terça-feira, outubro 28, 2008

A tempestade perfeita

Quem vai ganhar as eleições americanas no próximo dia 4 de Novembro? Há duas maneiras de tentar responder a esta questão. A primeira consiste em olhar para as dezenas de sondagens sobre intenções de voto, a nível estadual e nacional, que são publicadas todos os dias, e partir daí para fazer suposições sobre se estarão de facto a medir correctamente as intenções dos eleitores ou sobre o que poderá acontecer nos próximos oito dias. A outra, que agora proponho, consiste em recuar um ou dois passos em relação ao calor da campanha, ignorar as intenções de voto e olhar, em vez disso, para aqueles factores de longo e médio prazo que sabemos afectarem a maior parte dos eleitores e estabilizarem o seu comportamento muito antes da recta final de uma eleição. Cada um deles merece, em si mesmo, muito mais atenção do que aquilo que uma coluna como esta lhes pode oferecer. Mas os traços gerais podem ser resumidos rapidamente.

O primeiro aspecto relevante tem a ver com mudanças na composição social do eleitorado. Em 2004, John Judis e Ruy Teixeira publicaram um livro intitulado The Emerging Democratic Majority (Scribner) onde descreviam o crescimento de três segmentos sócio-demográficos concretos. Em 1970, as mulheres solteiras representavam apenas um terço da população feminina. Hoje, são a maioria. Em 1990, apenas 15 por cento do eleitorado era composto por aqueles que, na linguagem comum nos Estados Unidos, se designam como pertencendo a "minorias raciais". Hoje, são um em cada quatro eleitores. Finalmente, assistimos ao crescimento das profissões altamente qualificadas - os upper level professionals, muitos deles com formação pós-graduada. O domínio dos Democratas entre estes três segmentos do eleitorado é claro. Para as mulheres, especialmente as mais jovens, o conservadorismo e tradicionalismo do Partido Republicano são dificilmente toleráveis, tal como o seu anti-intelectualismo - as posições sobre a evolução ou o aquecimento global, por exemplo - gera alergia entre os mais instruídos. E para as minorias, o Partido Democrata é ainda - ou cada vez mais, após os últimos oito anos - visto como o partido que melhor defende os seus interesses. Isto não significa que iremos assistir à reconstrução de uma "coligação eleitoral" como a que FDR forjou com o New Deal e que, durante décadas, manteve os Democratas no poder. Esta nova "maioria Democrata" carece das bases organizacionais da anterior e tem interesses parcialmente contraditórios, especialmente no que respeita ao peso do Estado na economia. Mas em face das políticas do Partido Republicano nos últimos anos, esta coligação temporária foi-se alargando e consolidando.

Mas não foi só isto que mudou. Um estudo do Pew Center for the People & the Press, publicado em 2007, revela um conjunto de alterações notáveis nas predisposições ideológicas dos eleitores. Nos cinco anos anteriores, a percentagem de eleitores que afirma "identificar-se com o Partido Republicano" tinha descido de 30 para 25 por cento, ao passo que os independentes com "inclinação Democrata" tinham passado de 12 para 17 por cento. A percentagem de eleitores que acham que "os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres", que "é responsabilidade do governo tomar conta daqueles que não conseguem tomar conta de si próprios" ou que "as empresas têm lucros excessivos" é não só maioritária como aumentou em cerca de oito pontos em cada caso. Da mesma forma, a defesa de valores mais conservadores e tradicionalistas vem diminuindo, especialmente entre os mais jovens. Estas mudanças não devem ser vistas como lineares ou historicamente inexoráveis. Como mostrava James Stimson num livro de 1999, Public Opinion in America (Westview Press), as posições ideológicas dos americanos tendem a sofrer mudanças cíclicas, nomeadamente em reacção negativa a governações vistas como empurrando as políticas públicas em direcções demasiado extremas do ponto de vista ideológico. Mas, se assim for, a policy mood dos americanos encaminhou-se, nos últimos anos, numa direcção claramente favorável ao Partido Democrata.

Contudo, como provam as eleições de 2002 e 2004, estas mudanças não são condição suficiente para a vitória dos democratas. Em países onde o voto não é obrigatório, as vitórias não são feitas apenas de preferências eleitorais, mas também da capacidade de mobilizar essas preferências para o voto. Mas também aqui as coisas mudaram. Após a derrota de 2004, a "máquina" Democrata, quer a nível dos estados quer a nível nacional, começou a reconstruir-se, em grande medida devido à liderança local de muitos daqueles upper level professionals e das suas contribuições para as campanhas, assim como com o uso da Internet para a recolha de financiamentos, algo em que Howard Dean - actual presidente do Democratic National Commitee - foi pioneiro. É certo que existe, desde logo, um "gap" de entusiasmo nesta campanha. Como mostrava uma sondagem recente da Gallup, a percentagem dos indivíduos que se identificam com o Partido Democrata e se afirmam "entusiasmados" com a possibilidade de votar nestas eleições está 20 pontos acima do valor homólogo para os republicanos. Mas a diferença vê-se também, por exemplo, na vantagem de Obama em relação a McCain nas contribuições de campanha recolhidas, uma vantagem que ascende, neste momento, a uns incríveis 250 milhões de dólares. Vê-se também na capacidade em chegar aos eleitores: outro estudo recente mostra que a percentagem de eleitores directamente contactada pela campanha de Obama é de 29 por cento, enquanto a campanha de McCain chegou apenas a 21 por cento, vantagem essa que se amplia nos estados mais competitivos. E vê-se, finalmente, no esforço titânico dos Democratas para recensearem novos eleitores e promoverem o voto antecipado, aspectos onde os primeiros dados disponíveis apontam para uma vantagem enorme de Obama.

Mudanças sociais, ideológicas e organizacionais jogam unanimemente a favor dos Democratas. Mas há mais. O índice de confiança dos consumidores vem descendo desde o início de 2007, chegando hoje ao ponto mais baixo desde 1992, ou seja, o ano em que o pai do actual Presidente foi derrotado por Bill Clinton. A taxa de desemprego passou de 4,5 para mais de 6 por cento no último ano e meio. Apenas 10 por cento dos eleitores acham que o estado da economia é "bom" ou "excelente", o valor mais baixo desde 1992. A crise financeira contribuiu não apenas para piorar essas percepções mas também para silenciar todos os outros temas da campanha. E George W. Bush é o Presidente com as mais baixas taxas de popularidade desde Nixon em 1974.

Há uns anos, um livro e um filme popularizaram a expressão "tempestade perfeita", um conjunto de circunstâncias climatéricas que raramente ocorrem em conjunto mas que, quando conjugadas, provocam um efeito devastador. Obama, hoje, como vários observadores têm notado, cavalga uma dessas tempestades perfeitas. Ainda pode perder? Pode. Mas, se assim for, teremos de aceitar humildemente que tudo aquilo que julgamos saber sobre o comportamento dos eleitores e aquilo que o determina terá de ser revisto.

terça-feira, outubro 07, 2008

O pluralismo político-partidário, segundo a ERC

Há dias, foi conhecida uma deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) que se debruçava sobre o "pluralismo político-partidário no serviço público de televisão" durante o primeiro semestre de 2008. Nesse documento, a ERC socorre-se de uma análise dos noticiários da RTP. Seleccionaram-se 23 dos primeiros 182 dias do ano e identificaram-se, nos vários noticiários emitidos nesses dias, todas as peças onde havia referências ao governo ou a um partido político ou presenças de figuras deles responsáveis. Visionadas as peças (634), fez-se uma contagem do total de "presenças" dos vários actores político-partidários (730). Calculando percentagens por partido, obteve-se o peso relativo de cada um nas notícias da RTP.

Utilizou-se depois um segundo modelo em que essas percentagens são ponderadas por dois factores adicionais. Um deles é a audiência média por segundo de cada peça (apesar do relatório executivo, provavelmente por lapso, afirmar na página 13 que é a sua "duração"). O outro factor é a chamada "valência/tom", ou seja, se a notícia retrata cada agente político de forma positiva ou negativa. O relatório de 2007 explica um pouco melhor o que se quer dizer com isto. Mas como qualquer um de nós constatará se um dia fizer a experiência, é muito difícil determinar, mesmo com protocolos estritos e detalhados, se uma notícia tem um tom favorável ou desfavorável a uma ou outra força política. Especialmente quando se trata da análise de conteúdos onde se combinam o texto, o som e a imagem. E muito especialmente tendo em conta que todos nós temos preferências políticas, e que essas preferências enviesam a nossa análise. Logo, a classificação das notícias exigiu certamente codificadores humanos, que assistiram a cada uma das peças e tiraram conclusões sobre o seu tom de forma independente. Quantos foram? Qual o grau de concordância entre eles, aspecto essencial para perceber se foi possível fazer medições fiáveis? O relatório é omisso sobre isto, tal como é omisso sobre como foram exactamente ponderadas as percentagens inicialmente obtidas. Mas não nos inquietemos demasiado. Como se pode ver nas páginas 21 e 22 do sumário executivo, no Jornal da Tarde, por exemplo, o Governo teve 48,21% de presenças no "modelo simples", e 48,21% de presenças no "modelo ponderado", pelo que a tal ponderação não há-de ser excessivamente importante. E note-se o pormenor das duas casas decimais, aplicadas a um número total de "presenças" de actores político-partidários no Jornal da Tarde nos dias analisados que ascendeu ao grande total de 112.

Seja como for, estes números são depois comparados com aquilo a que ERC chama os "valores de referência", que representam, se bem entendo, aquilo que se considera ser a distribuição "ideal" de presenças para se obter o tal "pluralismo". Esses valores são de 50% para o Governo e o PS, 27,67% para o PSD e não vos maço com o resto. Que conclusões possíveis? Exemplo: "no Jornal da Tarde, o Governo, em conjunto com o PS, obtêm 57,1% no modelo simples (que considera apenas a presença) e 56,9% no modelo ponderado (que pondera a presença com a duração e a valência/tom das peças), ultrapassando o valor referência de 50% atribuído a este conjunto" (pag. 13). Há dezenas de afirmações semelhantes, em que os relatores identificam "diferenças" entre noticiários, "diferenças" entre partidos e "diferenças" entre os valores apurados para os partidos e os "de referência", de onde se retiram variadas recomendações à RTP. Já nem aborreço os leitores com detalhes sobre a possibilidade de muitas destas alegadas diferenças poderem carecer - tendo em conta que se está a usar uma amostra - de significância estatística. O problema fundamental é outro. Porquê 50% para PS+Governo, quando tem mais de metade dos deputados? E mesmo se os valores de referência correspondessem à distribuição de deputados, por que não ter usado os votos? E porquê as últimas eleições, e não a média de várias eleições? E por que não os resultados de sondagens actuais? E se o que está em causa é a "expressão e o confronto das diversas correntes de opinião", por que não dar peso igual a cada partido? E porquê pensar apenas nos partidos, e não em associações, grupos de interesse, minorias étnicas e religiosas, orientações sexuais, géneros, idade ou outra coisa qualquer susceptível de estar relacionada com diferentes preferências e opiniões? Espero que se perceba que estas perguntas são retóricas e que não defendo qualquer um dos métodos anteriores. Elas têm como mero objectivo demonstrar como o exercício é puramente arbitrário e como é simplista a interpretação adoptada pela ERC do conceito de "pluralismo político".

Permito-me fazer três sugestões à ERC, em espírito que, espero, seja interpretado como construtivo. A primeira é que deixe de fazer estudos destes. No máximo, poderia encomendar estudos semelhantes a universidades portuguesas ou até estrangeiras. É possível que, num tema tão complexo, esses estudos também exibam muitos problemas. Mas uma coisa é promover produção de conhecimento e debate público e académico. Outra é implicar directamente um órgão de estado nessas fragilidades e - mais grave ainda - partir delas para condicionar as escolhas dos jornalistas.

A segunda é que dediquem algum tempo a repensar o que significam pluralismo, rigor e imparcialidade. Não vai ser fácil, nem é suposto sê-lo. Mas a transformação dos noticiários e da informação não-diária em "tempos de antena" partidários impostos com critérios simplistas e arbitrários não é certamente a resposta. Ela poderá ter até efeitos negativos sobre a qualidade dos conteúdos noticiosos, tornando-os anódinos e indiferenciados. "Equilíbrio" e "neutralidade" não são a mesma coisa - e são certamente menos importantes - que rigor e objectividade.

Finalmente, tentem pensar noutras coisas para além da política partidária. Uma visita ao site da Ofcom, o congénere britânico da ERC, dará algumas ideias. Encontramos lá estudos sobre acessibilidade e deficiências físicas, publicidade a produtos bancários, obesidade infantil e juvenil, novos conteúdos e suportes tecnológicos, o peso do desporto nas emissões televisivas, a forma como minorias sociais são retratadas na programação, violência televisiva e muitos outros. Nunca com espírito "policial", mas com a intenção de trazer todos estes temas para a agenda pública e gerar informação rigorosa sobre eles. A ERC pode tentar fazer o mesmo. Aqui também se joga muito do que significa "rigor", "pluralismo", "independência" e os direitos, liberdades e garantias das pessoas. E tudo isto é preferível ao policiamento absurdo do cumprimento de percentagens com duas casas decimais.