terça-feira, maio 23, 2006

Guerra e opinião pública

A intervenção militar fundamentou-se num falso pretexto. Mesmo dando o benefício da dúvida à administração americana, pode dizer-se que ela não resistiu a empolar a importância de um conjunto de informações contraditórias e ambíguas, convicta de que a sua "grande estratégia" não era suficiente para persuadir a opinião pública ou os seus aliados. Apesar dos avisos de especialistas académicos e militares, sobrestimou-se o apoio das populações no terreno à intervenção militar, tanto quanto se subestimou a pujança e grau de organização das forças inimigas. A superioridade militar não chegou para lidar com as tácticas não convencionais utilizadas pelo inimigo, e a incompreensão das dinâmicas políticas do país acabaram por colocar as forças americanas à mercê dos interesses de facções locais. Mais tarde ou mais cedo, à medida que os meios de comunicação social abandonavam a sua passividade inicial, que as baixas aumentavam e que a expectativa de uma "guerra rápida" se frustrava, o entusiasmo inicial da opinião pública americana desvaneceu-se. Três anos e meio após o início da guerra, mais de metade dos americanos afirmavam que tinha sido "um erro", valor que não mais voltou a descer. Nessa altura, os decisores políticos norte-americanos já tinham sido apanhados na armadilha: os custos militares, políticos e económicos da permanência no território eram brutais; mas os custos da retirada pareciam ser ainda maiores.

O parágrafo anterior é, note-se, sobre a guerra do Vietname (o "falso pretexto" é o golfo de Tonquim) e convém admitir que o paralelismo implícito com a situação do Iraque tem inúmeras limitações. No Iraque, é possível que ainda esteja tudo em aberto. No Vietname, sabemos hoje qual foi o desfecho, e até sabemos que, no interior da administração americana, existia desde muito cedo a convicção de que a vitória era impossível. No Iraque, a consequência mais temida de uma retirada é a desordem e a guerra civil. No Vietname, já sabemos que o que se seguiu à retirada foi a "ordem", se bem que uma ordem que levou ao assassinato de dezenas de milhares e ao sofrimento de milhões de vietnamitas. No Iraque, teme-se que a uma retirada americana se siga a desestabilização de toda a região e a chegada ao poder do fundamentalismo islâmico em vários países. Mas no Vietname, apesar da invasão do Cambodja e da retaliação da China, as piores previsões da teoria dos dominós não se confirmaram. No Iraque, receia-se que uma derrota americana reforce o atrevimento do terrorismo fundamentalista. Mas após o Vietname, apesar de o inimigo de então (a União Soviética) se ter tornado mais afoito - especialmente em África - acabou por encontrar a sua própria armadilha no Afeganistão. O paralelismo pode ter, portanto, estes e muitos outros limites.

Contudo, há pelo menos um aspecto em que ele já pode ser feito com alguma segurança. Até ao Vietname, a visão prevalecente acerca da relação entre a opinião pública e a política externa era a de que a primeira tinha efeitos limitados sobre a segunda. Supostamente, a opinião pública sobre a política externa seria emocional, volátil, e desinformada, e careceria de peso suficiente para contrariar os pressupostos realistas que orientariam as decisões políticas: o "interesse nacional" e as capacidades reais dos estados. No entanto, o Vietname veio abalar todos estes pressupostos. Revelou-se, por exemplo, como as tendências da opinião pública americana em relação às intervenções militares são muito mais estáveis do que se assumia à primeira vista, sendo facilmente previsíveis na base quer do grau de consenso existente entre as elites políticas quer do número de baixas. Mais importante ainda, mostrou-se como a política externa pode acabar por ser profundamente condicionada pela opinião pública. A guerra, ao criar uma "sindrome Vietname" - uma aversão da opinião pública americana em relação à acção militar - acabou por, nos anos que se seguiram, ditar o carácter inconsequente da actuação dos Estados Unidos em locais do mundo tão distintos como Angola, o Irão, o Afeganistão, a América Central e o Líbano, para já não falar na vitória (tão "fácil" como enganadora) na primeira guerra do Golfo.

Hoje, como sugere John Mueller num artigo de Dezembro último na Foreign Affairs, "a síndrome Iraque" já está confortavelmente instalada. Numa sondagem de Setembro de 2005, 51 por cento dos americanos que consideravam que a guerra "não tinha valido a pena". A tendência é de crescimento - já vamos, neste mês, em 62 por cento - e tem-se revelado insensível aos esforços de persuasão da administração americana. A mesma sondagem deste mês revela que mais de metade dos eleitores americanos consideram que foram intencionalmente enganados pelo seu Presidente e querem diminuir o envolvimento militar no Iraque, ao passo que estão totalmente divididos sobre a ameaça que resulta do programa nuclear iraniano e o que deve ser feito caso o Irão tenha a possibilidade real de dispor de armas nucleares.

É possível que, para alguns, isto pareça uma boa notícia. Ela sugere a inevitável (e já visível) mudança da política externa americana em direcção ao multilateralismo e à diplomacia. Outros ainda poderão detectar uma feliz ironia no facto de, após muitos terem agitado a bandeira da "impotência" estratégica da Velha Europa - alegadamente prisioneira de uma opinião pública indisposta a assumir os custos da "luta contra o terrorismo" - os sinais mais claros de impotência presente e futura virem agora do outro lado do Atlântico. Contudo, a ironia que conta é outra. A actuação do Irão nos últimos meses já revela como, por ter usado insensatamente a força, a administração americana retirou credibilidade ao seu uso futuro, enfraquecendo não apenas a posição negocial e diplomática dos Estados Unidos mas também a de todo o "Ocidente" em nome do qual, pelos vistos, os partidários da guerra ainda vão agitando bandeiras. A ironia existe, mas é muito triste.

quinta-feira, maio 11, 2006

O problema das receitas

A nacionalização das reservas de gás e petróleo levada a cabo pelo presidente Evo Morales fornece um exemplo — entre muitos possíveis — de como as receitas ideológicas tradicionais se revelam altamente deficientes para interpretar o mundo e conceber soluções para os problemas. O caso boliviano tem suscitado, em muitos dos comentários na imprensa, duas reacções genéricas. A primeira consiste em apresentá-lo como sintoma da rejeição popular das políticas “neo-liberais” seguidas nos últimos quinze anos na América Latina e do renascimento de “vias alternativas para enfrentar os desequilíbrios sociais”, numa suposta “viragem à esquerda” em toda a região. A segunda reacção é simétrica em relação à anterior, e consiste em descrever os acontecimentos na Bolívia como fazendo parte de uma onda de “populismos de esquerda” que atravessaria hoje a América Latina, cuja oposição ao “consenso de Washington” implicará um desvio catastrófico em relação à exemplar “receita” que, por exemplo, tinha transformado a Bolívia dos anos 90 num “caso de sucesso” aos olhos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional.

Sucede, infelizmente, que estes esquemas interpretativos convivem mal com alguns factos. Por um lado, importa recordar que um dos aspectos mais curiosos das políticas de ajustamento seguidas na maioria dos países da América Latina a partir dos anos 90 é o facto de terem contado com substancial apoio político e social durante mais de uma década, apesar produzirem custos de curto prazo susceptíveis de gerar enorme descontentamento. É certo que esse apoio diminuir com a crise económica de 2000-2003. Mas um olhar pelos dados recolhidos pelo Latinobarómetro em 2005 revela uma realidade que continuará a ser, porventura, surpreendente para muitos. Por exemplo, mais de metade dos cidadãos da América Latina continuam a considerar que a economia de mercado é “o único sistema na base do qual o país pode chegar a ser desenvolvido” ou que “as empresas privadas são indispensáveis para o desenvolvimento”, mesmo em países como a Nicarágua, as Honduras e a própria Bolívia. E se é certo que o apoio às privatizações diminuiu com a crise económica, a verdade é que também ele voltou a crescer desde então.

Mais interessante ainda é verificar quem são e onde estão os opositores à liberalização económica. Como demonstra uma série de estudos dos economistas Eduardo Lora e Ugo Panizza (.pdf) para além de não haver sinais de uma deslocação dos eleitorados destes países para a esquerda, as correlações entre o seu posicionamento ideológico e as opiniões sobre a economia de mercado, o sector privado, o investimento externo ou as privatizações são, em geral, baixíssimas. Pelo contrário, aqueles que mais se opõem à liberalização económica não são necessariamente os estratos sociais mais pobres e desfavorecidos, mas sim aqueles que, seja qual for a sua classe social, pressentem que a corrupção é um problema importante nas suas sociedades e, especialmente, se sentem distantes do processo político e sem confiança nos partidos. Como assinalam os autores, num artigo publicado em 2003 no Journal of Democracy (mas cujas conclusões empíricas se mantêm válidas), “a rejeição [dos processos de reforma] não é mais forte nos países onde mais se avançou na liberalização económica, mas sim onde ela foi mais contaminada pela corrupção ou onde a regulação não foi capaz de prevenir práticas monopolistas”. Sobre a hostilidade intrínseca do “povo de esquerda” ao “neo-liberalismo”, estamos conversados.

Contudo, do outro lado da barricada ideológica, a miopia não é necessariamente menor. É certo que aqueles que permanecem defensores do “consenso de Washington” têm a seu favor o facto de ser difícil imaginar maiores custos sociais do que aqueles que resultaram da hiper-inflação dos anos 80 (com taxas acima dos 1.000% ao ano) em países como a Argentina, o Brasil, o Peru ou a Bolívia. Contudo, seria um erro sobrestimar os feitos ou subestimar os efeitos perversos daquilo que se que se seguiu, por exemplo, no caso da Bolívia: o esforço mais drástico de liberalização económica em toda a América Latina. Ao contrário daquilo que vão prometendo aqueles que encaram o crescimento económico com um fim em si mesmo, a distribuição dos seus benefícios foi de tal modo assimétrica que, para alguns sectores da população, não existiram de todo. Apesar da pobreza na Bolívia ter, até 2000, diminuído entre a população urbana, ela atinge hoje, exactamente como há vinte anos, mais de 80% da população rural (1). Ao mesmo tempo – e mais importante ainda — a pulverização dos anteriormente poderosos sindicatos, resultado das privatizações, acabou também por desarticular a única base institucionalizada de representação dos interesses das camadas sociais mais desfavorecidas e, logo, por aumentar a margem de manobra de uma das classes políticas mais oligárquicas de toda a América Latina, que repartiu uma grande parte dos benefícios do crescimento na base de um modelo predominantemente neo-patrimonialista. Repetiu-se, assim, uma história já conhecida: a de como, em sociedades com baixos níveis de desenvolvimento económico e institucional, a “receita” da liberalização económica acaba por quebrar as já ténues ligações entre a sociedade e o poder político e por abrir novas oportunidades para o clientelismo. No caso concreto da Bolívia, a proibição da cultura da coca, as fortes tradições de mobilização social do campesinato e a inusitada violência com que o regime lhe foi respondendo trataram do resto.

Logo, em vez de perderem tempo a lamentar o “populismo de esquerda” e as suas previsíveis consequências desastrosas, os defensores do defunto “consenso de Washington” fariam talvez melhor em ponderar exactamente como, quando e por quem foram criadas as oportunidades para a emergência de empreendedores políticos que, agora, são capazes de mobilizar na pior direcção o profundo desalento e cinismo político que atinge os cidadãos de vários países da América Latina. E desta vez, é favor evitar a receita do costume.

(1) Em 2002, 42,2% da população da Bolívia vivia com menos de $2,15 por dia a preços de 1993 (PPP). Em Portugal, essa percentagem, em 1994 (o Banco Mundial, a fonte que tenho à mão neste momento, não tem dados posteriores), era de 2%. No Brasil, em 2003, 21,3%. Com esta definição, se todos os milionários que vivem nos Estados Unidos se mudassem para a Bolívia, o "nível de pobreza" da Bolívia não "disparava", mas passava de uns chocantes 42% para uns igualmente chocantes 34%. Há brincadeiras que não têm graça nenhuma.