segunda-feira, março 27, 2006

O lugar do PSD

Imaginem que, num qualquer país da Europa Ocidental, um partido de “centro-esquerda” ganhava eleições prometendo pouco mais que austeridade, contra um partido de “centro-direita” que prometia reduzir impostos e aumentar pensões. Poucos meses depois, o novo governo aumentava os impostos. Congelava subsídios e progressões na carreira dos funcionários públicos, aumentava-lhes os salários abaixo da inflação e prometia aumentar-lhes a idade de reforma para 65 anos. Durante o seu primeiro ano de mandato, o desemprego subia para 8%, atingindo o valor mais alto em oito anos. E imaginem agora — e poderá não será fácil — que, um ano depois das eleições, o partido do governo era ainda aquele que recolhia mais intenções de voto nas sondagens. Que o Primeiro-Ministro era o líder partidário com mais altas taxas de aprovação, próximas dos 50% e cerca de 20 pontos percentuais acima das do líder do principal partido de oposição. E que esse líder da oposição, cujo partido tinha recentemente triunfado em duas eleições, era visto unanimemente como um “regente” a prazo, a quem só restaria esperar pela inevitável destituição na véspera das próximas eleições legislativas. Pode não ser fácil imaginar tudo isto, mas não é preciso imaginar: tudo isto se passa em Portugal.

Das várias questões que estes desenvolvimentos levantam, uma das mais importantes é esta: por que será tão difícil ser-se oposição ao actual governo? O comentário jornalístico tende a privilegiar explicações circunstanciais: a eficácia, real ou imaginada, da acção do governo e do Primeiro-Ministro; a falta de “carisma” de Marques Mendes; os mecanismos de controlo da agenda política ao dispor dos governos, que este parece saber usar com particular destreza; ou a “memória viva” do consulado Santana Lopes. Já os politólogos costumam concentrar-se em explicações estruturais que, de resto, estão longe de serem específicas ao caso português ou ao momento presente. Há exactamente quarenta anos, numa das raras obras dedicadas à triste condição de se ser “oposição” — Political Oppositions in Western Democracies (Yale University Press) — Robert Dahl, o decano dos cientistas políticos norte-americanos, traçava os traços fundamentais daquilo que estava para vir: um declínio estrutural da “oposição”. Segundo Dahl, ao passo que os conflitos entre governo e oposição seriam cada vez menos estruturados em torno de características, interesses e identidades sociais dos eleitorados, retirando-lhes assim conteúdo político e ideológico, estaríamos simultaneamente perante a ascensão de um novo “Leviathan democrático, (…) que reflecte um compromisso com a virtudes do pragmatismo, moderação e mudança incremental; uma política não-ideológica ou anti-ideológica” (p. 399). O fim da Guerra Fria e o triunfo do capitalismo liberal só acentuaram as tendências detectadas por Dahl. Isto não implica, claro, o fim de toda e qualquer oposição eficaz ao poder, mas tão só daquela que meramente aspira a substituir aqueles que, de momento, vão manejando a custo as rédeas do “monstro”. Resta-lhe apenas esperar pelos fracassos dos governos e, entretanto — como sustentava há uma semana António Borges, com a habitual densidade ideológica — tentar a “sedução dos eleitores”.

Contudo, é possível que o caso do PSD mereça atenção especial. Apesar dos ideólogos do partido terem sempre resistido a classificá-lo ideologicamente, esta indeterminação nem sempre constituiu impedimento a que o PSD encontrasse um papel claro com que se pudesse apresentar ao eleitorado. Primeiro, e sob Sá Carneiro, o PSD assumiu-se como a força de oposição moderada ao poder militar do pós-25 de Novembro e à sua aliança (com o tempo desfeita) com o PS; mais tarde, e sob Cavaco Silva, como o agente do desmantelamento das “conquistas da revolução” mais manifestamente desfasadas da nossa integração no mundo ocidental.

Completados esses projectos, o que sobrou? O que representa e que lugar ocupa o PSD? A resposta não é evidente. Mais evidente é que, sob a liderança de Cavaco Silva, o PSD transformou-se numa manifestação acabada daquilo a que, num famoso artigo de 1995, Richard Katz e Peter Mair chamavam o “partido-cartel”, caracterizado pela simbiose entre os quadros do governo e do estado e a liderança partidária de topo, pela emergência de uma clivagem entre essa liderança e uma cada vez mais autónoma elite intermédia de líderes regionais e locais e, finalmente, por conflitos internos que têm a ver muito menos com a representação de interesses de segmentos concretos do eleitorado do que com as melhores estratégias para obter e repartir cargos e poder. Esta sua natureza de “partido-cartel” é, aliás, o maior impedimento a que o PSD se possa assumir, como alguns lhe vão pedindo, como um partido mais claramente liberal do ponto de vista económico. O problema não é tanto o da insensatez eleitoral de semelhante estratégia, mas sim o facto de, com um partido condicionado pela voracidade autárquica e interessado em preservar a cartelização de lugares e recursos do estado, não há líder a quem se consinta propor a desmontagem do Leviathan.

E entretanto, o PS foi mudando. Semelhante ao PSD em muitos dos anteriores aspectos, os seus líderes aproveitaram, no entanto, as sucessivas lutas entre facções ideológicas internas para, quando delas vencedores, utilizarem essa autonomia estratégica para a reconfiguração do discurso do partido de acordo com aquilo que, afinal, tinha sempre sido a sua prática política enquanto poder: a ocupação do lugar cardinal da política moderna que o PSD julgava seu, “entre o centro-esquerda e o centro-direita”, o centro do centro. Hoje, como demonstram sucessivos estudos eleitorais, o “votante mediano” é do PS. Contra isto, pode não restar muito mais para além de esperar pelos fracassos do actual governo e ir prometendo mais e melhor do mesmo. Contudo, como a débil vitória nas eleições de 2002 e tudo o que se lhe seguiu claramente sugerem, até isso pode já não ser suficiente.