Recuperação: A partidarização do Tribunal Constitucional
A propósito deste artigo de Pedro Lomba (de que só não subscrevo a primeira parte do último parágrafo), mencionado aqui, recupero um texto que escrevi há quase cinco anos (27 de Junho de 2002), publicado no Público. Não lhe retiraria hoje uma vírgula (o que é raro). Talvez aproveitasse, por estes dias, para fazer umas considerações adicionais sobre o STJ, os seus juízes e a sua jurisprudência. E isso não me impede de reconhecer que a saída de Rui Pereira é um sintoma de insuficiente prestígio da instituição em comparação com instituições congéneres.
A decisão do Tribunal Constitucional (TC) que se pronunciou pela inconstitucionalidade das alterações à Lei da Televisão ressuscitou o debate acerca da designação dos seus juízes.
A primeira linha de argumentação crítica consiste em contestar a própria existência da instituição, defendendo-se que seja substituída, por exemplo, pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Na verdade, há democracias onde a fiscalização da constitucionalidade das leis, quando existe, é concedida exclusivamente aos tribunais comuns. Contudo, importa notar que esses supremos tribunais se parecem muito pouco com os nossos, sendo, em regra, escolhidos por órgãos políticos (tal como sucede com o Supremo Tribunal nos Estados Unidos). Logo, transferir os actuais poderes do TC para o STJ colocar-nos-ia numa posição absolutamente singular no panorama internacional. Ser-se original não é pecado. Mas cabe aos proponentes dessa ideia explicar por que razão deverá o enorme poder de contrariar a vontade das maiorias parlamentares ser concedido a juízes politicamente irresponsáveis e cujos méritos técnico-jurídicos nestas matérias estão longe de se poderem dar como adquiridos. Afinal, a opacidade do funcionamento interno do poder judicial em Portugal, a negligente aplicação de critérios de mérito na progressão na carreira e o permanente impedimento à entrada de não-juízes nos tribunais superiores são as melhores razões para que, ao contrário de José Marques Vidal, não possamos ver o Tribunal Constitucional como "um luxo desnecessário".
Muito mais interessante é o debate acerca das modalidades de designação dos juízes do TC e das suas consequências. Para Manuel Villaverde Cabral (MVC), a eleição parlamentar dos juízes e a actuação dos agentes políticos transformou o TC numa mera "emanação do sistema partidário", que produz "decisões puramente partidárias", vistas como tal por cidadãos que, na sua maioria, pouca ou nenhuma confiança depositam nos tribunais. Até Mário Mesquita, que no fundamental discorda de MVC, entende que "a composição do TC não deveria ser exclusivamente ditada pela Assembleia".
Concentremo-nos nos factos. Primeiro, em todas as dezassete democracias do Conselho da Europa onde existem tribunais constitucionais, os parlamentos (ou seja, os partidos) intervêm sempre, em maior ou menor grau, na eleição dos juízes. Segundo, a intervenção de outras entidades neste domínio não garante a "despartidarização" dos juízes. Os membros do Conselho Constitucional francês designados pelo Presidente não são menos "partidários" que os restantes, e este poder de escolher de forma incondicionada uma "quota" de juízes tem resultado inclusivamente na selecção de ex-ministros ou deputados, política e pessoalmente fiéis a quem o nomeou. E os casos espanhol e italiano mostram como a lógica partidária penetra mesmo as instituições julgadas "impolutas": os juízes destes TC's designados pelos conselhos das magistraturas são facilmente enquadráveis em facções "progressistas" ou "conservadoras" do poder judicial, todas elas com fortes laços a partidos políticos. Em resumo, em menor ou maior grau, a "partidarização" na selecção dos juízes é comum a todos - repito, todos - os tribunais constitucionais nas democracias ocidentais.
Resta assim perguntar se as coisas poderiam ou deveriam ser doutra maneira. Para quem ache que a aplicação das leis constitucionais pode alguma vez ser uma actividade "apolítica", ou que os juízes de carreira são menos "políticos" que os outros, haverá sempre outras soluções. Infelizmente, ambas as pressuposições são totalmente irrealistas. Para os restantes, há duas maneiras de responder à questão colocada. Por um lado, os estudos existentes demonstram que, na fiscalização preventiva, há de facto uma tendência para que os juízes do TC votem pela inconstitucionalidade de diplomas que tiveram no parlamento a oposição dos partidos que "indicaram" os seus nomes. Contudo, estes estudos não provam que isso suceda noutras modalidades de fiscalização da constitucionalidade (abstracta sucessiva ou concreta). Mais: se os partidos votam as leis no parlamento de acordo com as suas preferências ideológicas e propõem juízes que esperam estarem próximos dessas preferências, porque haveriam estes, em matérias que frequentemente apelam à sua interpretação do direito constitucional, de votar de uma forma politicamente aleatória? Assim, nada disto permite concluir que o que se passa na fiscalização preventiva decorra de um voto de pura "disciplina partidária".
A segunda resposta é muito mais simples: nada disto importa, mas sim as decisões do TC como um todo. E desse ponto de vista, receio que sejam infrutíferas as tentativas para encontrar nos últimos vinte anos uma tendência de favorecimento sistemático de uma qualquer força partidária por parte do TC. Esse é, aliás, um resultado directo da elegância da solução engendrada em 1982. É certo a designação por dois terços do parlamento de dez juízes e cooptação dos restantes três foi muito ditada por preocupações estritamente político-partidárias, tais como reduzir a capacidade de intervenção de Ramalho Eanes. É também verdade que, ao longo da história do TC, houve dificuldades e atrasos nalgumas nomeações e escolhas porventura menos felizes, e que a modalidade inicial (alterada na revisão de 1997) de mandatos curtos e renováveis não favoreceu uma imagem de autonomia em relação aos partidos.
Contudo, importa não ignorar as virtudes da solução. A eleição por maioria qualificada tem favorecido o equilíbrio no TC entre um pensamento constitucional "de esquerda" e "de direita", e facilitado que até os pequenos partidos - incluindo o CDS e o PCP - se vejam representados no Tribunal e lhe reconheçam legitimidade (basta ir a Espanha para ver que isto não é um problema menor). E ao contrário do que sugere MVC, não parece que a solução tenha tido especiais custos em termos da adesão dos cidadãos à instituição. Afinal, como demonstra um estudo publicado na American Political Science Review em 1998, os tribunais constitucionais da Alemanha, Polónia e Portugal - precisamente os três onde não há intervenção do Presidente, do Governo, ou dos conselhos das magistraturas na designação dos juízes - são aqueles que, na Europa, maior apoio recebem por parte dos cidadãos. Em Portugal, e como mostram três estudos realizados em três anos consecutivos pela Universidade Católica, o TC é objecto de menor desconfiança por parte dos cidadãos do que o STJ e, já agora, do que o parlamento ou o governo. Coincidências? Não creio.
A decisão do Tribunal Constitucional (TC) que se pronunciou pela inconstitucionalidade das alterações à Lei da Televisão ressuscitou o debate acerca da designação dos seus juízes.
A primeira linha de argumentação crítica consiste em contestar a própria existência da instituição, defendendo-se que seja substituída, por exemplo, pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Na verdade, há democracias onde a fiscalização da constitucionalidade das leis, quando existe, é concedida exclusivamente aos tribunais comuns. Contudo, importa notar que esses supremos tribunais se parecem muito pouco com os nossos, sendo, em regra, escolhidos por órgãos políticos (tal como sucede com o Supremo Tribunal nos Estados Unidos). Logo, transferir os actuais poderes do TC para o STJ colocar-nos-ia numa posição absolutamente singular no panorama internacional. Ser-se original não é pecado. Mas cabe aos proponentes dessa ideia explicar por que razão deverá o enorme poder de contrariar a vontade das maiorias parlamentares ser concedido a juízes politicamente irresponsáveis e cujos méritos técnico-jurídicos nestas matérias estão longe de se poderem dar como adquiridos. Afinal, a opacidade do funcionamento interno do poder judicial em Portugal, a negligente aplicação de critérios de mérito na progressão na carreira e o permanente impedimento à entrada de não-juízes nos tribunais superiores são as melhores razões para que, ao contrário de José Marques Vidal, não possamos ver o Tribunal Constitucional como "um luxo desnecessário".
Muito mais interessante é o debate acerca das modalidades de designação dos juízes do TC e das suas consequências. Para Manuel Villaverde Cabral (MVC), a eleição parlamentar dos juízes e a actuação dos agentes políticos transformou o TC numa mera "emanação do sistema partidário", que produz "decisões puramente partidárias", vistas como tal por cidadãos que, na sua maioria, pouca ou nenhuma confiança depositam nos tribunais. Até Mário Mesquita, que no fundamental discorda de MVC, entende que "a composição do TC não deveria ser exclusivamente ditada pela Assembleia".
Concentremo-nos nos factos. Primeiro, em todas as dezassete democracias do Conselho da Europa onde existem tribunais constitucionais, os parlamentos (ou seja, os partidos) intervêm sempre, em maior ou menor grau, na eleição dos juízes. Segundo, a intervenção de outras entidades neste domínio não garante a "despartidarização" dos juízes. Os membros do Conselho Constitucional francês designados pelo Presidente não são menos "partidários" que os restantes, e este poder de escolher de forma incondicionada uma "quota" de juízes tem resultado inclusivamente na selecção de ex-ministros ou deputados, política e pessoalmente fiéis a quem o nomeou. E os casos espanhol e italiano mostram como a lógica partidária penetra mesmo as instituições julgadas "impolutas": os juízes destes TC's designados pelos conselhos das magistraturas são facilmente enquadráveis em facções "progressistas" ou "conservadoras" do poder judicial, todas elas com fortes laços a partidos políticos. Em resumo, em menor ou maior grau, a "partidarização" na selecção dos juízes é comum a todos - repito, todos - os tribunais constitucionais nas democracias ocidentais.
Resta assim perguntar se as coisas poderiam ou deveriam ser doutra maneira. Para quem ache que a aplicação das leis constitucionais pode alguma vez ser uma actividade "apolítica", ou que os juízes de carreira são menos "políticos" que os outros, haverá sempre outras soluções. Infelizmente, ambas as pressuposições são totalmente irrealistas. Para os restantes, há duas maneiras de responder à questão colocada. Por um lado, os estudos existentes demonstram que, na fiscalização preventiva, há de facto uma tendência para que os juízes do TC votem pela inconstitucionalidade de diplomas que tiveram no parlamento a oposição dos partidos que "indicaram" os seus nomes. Contudo, estes estudos não provam que isso suceda noutras modalidades de fiscalização da constitucionalidade (abstracta sucessiva ou concreta). Mais: se os partidos votam as leis no parlamento de acordo com as suas preferências ideológicas e propõem juízes que esperam estarem próximos dessas preferências, porque haveriam estes, em matérias que frequentemente apelam à sua interpretação do direito constitucional, de votar de uma forma politicamente aleatória? Assim, nada disto permite concluir que o que se passa na fiscalização preventiva decorra de um voto de pura "disciplina partidária".
A segunda resposta é muito mais simples: nada disto importa, mas sim as decisões do TC como um todo. E desse ponto de vista, receio que sejam infrutíferas as tentativas para encontrar nos últimos vinte anos uma tendência de favorecimento sistemático de uma qualquer força partidária por parte do TC. Esse é, aliás, um resultado directo da elegância da solução engendrada em 1982. É certo a designação por dois terços do parlamento de dez juízes e cooptação dos restantes três foi muito ditada por preocupações estritamente político-partidárias, tais como reduzir a capacidade de intervenção de Ramalho Eanes. É também verdade que, ao longo da história do TC, houve dificuldades e atrasos nalgumas nomeações e escolhas porventura menos felizes, e que a modalidade inicial (alterada na revisão de 1997) de mandatos curtos e renováveis não favoreceu uma imagem de autonomia em relação aos partidos.
Contudo, importa não ignorar as virtudes da solução. A eleição por maioria qualificada tem favorecido o equilíbrio no TC entre um pensamento constitucional "de esquerda" e "de direita", e facilitado que até os pequenos partidos - incluindo o CDS e o PCP - se vejam representados no Tribunal e lhe reconheçam legitimidade (basta ir a Espanha para ver que isto não é um problema menor). E ao contrário do que sugere MVC, não parece que a solução tenha tido especiais custos em termos da adesão dos cidadãos à instituição. Afinal, como demonstra um estudo publicado na American Political Science Review em 1998, os tribunais constitucionais da Alemanha, Polónia e Portugal - precisamente os três onde não há intervenção do Presidente, do Governo, ou dos conselhos das magistraturas na designação dos juízes - são aqueles que, na Europa, maior apoio recebem por parte dos cidadãos. Em Portugal, e como mostram três estudos realizados em três anos consecutivos pela Universidade Católica, o TC é objecto de menor desconfiança por parte dos cidadãos do que o STJ e, já agora, do que o parlamento ou o governo. Coincidências? Não creio.