Um mundo irreal
António Costa veio dizer que existe uma campanha mediática contra o primeiro-ministro, orquestrada pelo PÚBLICO, pelo seu director e pelo seu proprietário. Luís Filipe Menezes, retomando argumentos antigos, acha que o tempo de antena que a RTP devota ao comentário político devia ser loteado pelos principais partidos e suas tendências. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social devota uma parte considerável dos seus recursos a avaliar o "rigor informativo" dos diversos órgãos de comunicação e o tempo que devotam a este ou aquele partido ou líder, assim zelando pela "independência" dos órgãos de comunicação social em relação aos poderes político e económico. Não há eleições em Portugal que passem sem uma boa polémica sobre conspirações dos institutos de sondagens e da imprensa que as divulga contra este ou aquele candidato ou partido. Um estrangeiro que chegue a Portugal e se depare com tudo isto, julgará ter aterrado na Venezuela. E andamos nisto desde que me recordo de prestar alguma atenção à política: a imparcialidade da comunicação social (pública ou privada) e as alegadas manipulações e conspirações contra este ou aquele partido ou interesse são um tema quase permanente na agenda política portuguesa.
Parte da explicação para isto não será exclusivamente nacional. É simplesmente humana. Num estudo já clássico realizado em 1982, sobre aquilo que acabou por ficar consagrado na bibliografia com a designação de hostile media effect, três psicólogos norte-americanos pediram a mais de uma centena de alunos da Universidade de Stanford que assistissem a um bloco de notícias sobre os massacres de Sabra e de Chatilla. Antes do visionamento, os estudantes respondiam a um questionário onde se media o seu conhecimento factual sobre o que se tinha passado, assim como a sua simpatia ou antipatia em relação aos actores relevantes. Após assistirem aos segmentos noticiosos - iguais para todos os participantes e retirados de emissões reais de cadeias noticiosas norte-americanas - esses estudantes responderam a um novo questionário, onde avaliavam o grau de imparcialidade do que tinham acabado de assistir. Os resultados descrevem-se de forma simples: enquanto os estudantes pró-israelitas avaliaram as notícias como sendo pró-árabes, os estudantes pró-árabes avaliaram as notícias como sendo pró-israelitas. Mais interessante ainda, este enviesamento na percepção do grau de parcialidade das notícias não diminuía entre os estudantes com maior conhecimento dos factos. Pelo contrário, paradoxalmente, quanto mais informados estavam sobre o tema, mais os estudantes viam as notícias como estando enviesadas contra o lado com o qual mais simpatizavam. Por outras palavras, estamos todos convencidos de que existe uma "verdade dos factos" e um mundo que pode ser facilmente pintado a preto e branco. Mas, como a cor que vemos nessa "verdade" depende das nossas preferências e inclinações, tudo o que tenha tons de cinzento é visto como sendo favorável aos nossos adversários e, logo, uma "mentira" ou uma "manipulação". Que os mais informados ainda sejam mais atreitos a esta enviesamento cognitivo mostra como a informação é usada para confirmar preconceitos em vez de os afastar.
Mas imaginemos que esta espécie de mania de perseguição pela comunicação social, fenómeno psicológico quase universal, tem alguns fundamentos reais. Também não seria surpreendente que assim fosse. Como imaginar que as direcções editoriais dos órgãos de comunicação social são compostas por pessoas sem preferências políticas e ideológicas, que os seus proprietários não têm interesses que gostariam de ver satisfeitos e que nada disso se reflecte no conteúdo noticioso? Mas o debate em Portugal sobre estes temas permanece num mundo de "faz de conta". É um mundo em que se espera imparcialidade, neutralidade e equilíbrio de todos os órgãos de comunicação social. Mais grave ainda, é um mundo em que, na - inevitável - ausência desses maravilhosos e democráticos atributos, se espera e exige muitas vezes uma qualquer - indefinida - regulação e resolução do "problema". Parte disto resulta do facto de, em Portugal, ter existido até muito tarde na imprensa escrita um enorme sector público, que foi, durante as primeiras duas décadas da nossa democracia, objecto de óbvia manipulação política. Desde então, a "falta de independência" da comunicação social entrou como tema legítimo de combate na agenda política portuguesa para dela nunca mais sair. Por outro lado, isto resulta também da dimensão reduzidíssima do mercado de leitores de jornais em Portugal, que fez com que a criação de órgãos de imprensa escrita alinhados de forma mais ou menos explícita com correntes ideológicas ou partidos políticos tenha sido sempre economicamente inviável. Logo, na ausência de órgãos assumidamente sintonizados com este ou aquele partido, o debate sobre estes temas em Portugal passa-se num mundo fictício em que parece legítimo esperar e pedir que, por exemplo, o PÚBLICO, o Diário de Notícias ou o Expresso e as suas direcções editoriais não tenham agendas próprias, temas dilectos e, porque não dizê-lo, preferências ideológicas e objectivos e adversários políticos. Aqui ao lado, em Espanha, debates deste género sobre a "imparcialidade" do El Mundo, do ABC ou do El Pais, sobre como "zelar" - palavra horrível - pela independência de órgãos de comunicação privados ou sobre como garantir a "correcção" das sondagens feitas de institutos privados seriam em grande medida destituídos de sentido. Mas em Portugal, pelos vistos, não são.
Mas suponho que teremos de ser tolerantes. Uma das coisas mais curiosas que me ficaram das minhas raras interacções com responsáveis político-partidários é a sua tendência para a obsessão com a comunicação social, com a perseguição que sentem ser-lhes movida pelos jornais ou pela televisão, com as alegadas distorções e manipulações das sondagens ou com o que está por detrás das opiniões de malévolos comentadores. Mas compreendamos que este é, afinal, o "mundo real" dos políticos (e, em grande medida, de muitos jornalistas), só ocasionalmente entremeado por alguns indicadores estatísticos e umas visitas "ao terreno" organizadas pelas estruturais locais dos partidos. Entre eleições, a política é um jogo onde não há golos, como no futebol, ou pontos, como no boxe. Todos querem saber "quem está a ganhar", mas não há outros indicadores que não sejam as tendências das sondagens, os editoriais dos jornais e as notícias das secções de política. Tudo bem. Só se espera que esta obsessão não os faça esquecer que há outro mundo, bem menos irreal, no qual vivem todos os restantes portugueses.
Parte da explicação para isto não será exclusivamente nacional. É simplesmente humana. Num estudo já clássico realizado em 1982, sobre aquilo que acabou por ficar consagrado na bibliografia com a designação de hostile media effect, três psicólogos norte-americanos pediram a mais de uma centena de alunos da Universidade de Stanford que assistissem a um bloco de notícias sobre os massacres de Sabra e de Chatilla. Antes do visionamento, os estudantes respondiam a um questionário onde se media o seu conhecimento factual sobre o que se tinha passado, assim como a sua simpatia ou antipatia em relação aos actores relevantes. Após assistirem aos segmentos noticiosos - iguais para todos os participantes e retirados de emissões reais de cadeias noticiosas norte-americanas - esses estudantes responderam a um novo questionário, onde avaliavam o grau de imparcialidade do que tinham acabado de assistir. Os resultados descrevem-se de forma simples: enquanto os estudantes pró-israelitas avaliaram as notícias como sendo pró-árabes, os estudantes pró-árabes avaliaram as notícias como sendo pró-israelitas. Mais interessante ainda, este enviesamento na percepção do grau de parcialidade das notícias não diminuía entre os estudantes com maior conhecimento dos factos. Pelo contrário, paradoxalmente, quanto mais informados estavam sobre o tema, mais os estudantes viam as notícias como estando enviesadas contra o lado com o qual mais simpatizavam. Por outras palavras, estamos todos convencidos de que existe uma "verdade dos factos" e um mundo que pode ser facilmente pintado a preto e branco. Mas, como a cor que vemos nessa "verdade" depende das nossas preferências e inclinações, tudo o que tenha tons de cinzento é visto como sendo favorável aos nossos adversários e, logo, uma "mentira" ou uma "manipulação". Que os mais informados ainda sejam mais atreitos a esta enviesamento cognitivo mostra como a informação é usada para confirmar preconceitos em vez de os afastar.
Mas imaginemos que esta espécie de mania de perseguição pela comunicação social, fenómeno psicológico quase universal, tem alguns fundamentos reais. Também não seria surpreendente que assim fosse. Como imaginar que as direcções editoriais dos órgãos de comunicação social são compostas por pessoas sem preferências políticas e ideológicas, que os seus proprietários não têm interesses que gostariam de ver satisfeitos e que nada disso se reflecte no conteúdo noticioso? Mas o debate em Portugal sobre estes temas permanece num mundo de "faz de conta". É um mundo em que se espera imparcialidade, neutralidade e equilíbrio de todos os órgãos de comunicação social. Mais grave ainda, é um mundo em que, na - inevitável - ausência desses maravilhosos e democráticos atributos, se espera e exige muitas vezes uma qualquer - indefinida - regulação e resolução do "problema". Parte disto resulta do facto de, em Portugal, ter existido até muito tarde na imprensa escrita um enorme sector público, que foi, durante as primeiras duas décadas da nossa democracia, objecto de óbvia manipulação política. Desde então, a "falta de independência" da comunicação social entrou como tema legítimo de combate na agenda política portuguesa para dela nunca mais sair. Por outro lado, isto resulta também da dimensão reduzidíssima do mercado de leitores de jornais em Portugal, que fez com que a criação de órgãos de imprensa escrita alinhados de forma mais ou menos explícita com correntes ideológicas ou partidos políticos tenha sido sempre economicamente inviável. Logo, na ausência de órgãos assumidamente sintonizados com este ou aquele partido, o debate sobre estes temas em Portugal passa-se num mundo fictício em que parece legítimo esperar e pedir que, por exemplo, o PÚBLICO, o Diário de Notícias ou o Expresso e as suas direcções editoriais não tenham agendas próprias, temas dilectos e, porque não dizê-lo, preferências ideológicas e objectivos e adversários políticos. Aqui ao lado, em Espanha, debates deste género sobre a "imparcialidade" do El Mundo, do ABC ou do El Pais, sobre como "zelar" - palavra horrível - pela independência de órgãos de comunicação privados ou sobre como garantir a "correcção" das sondagens feitas de institutos privados seriam em grande medida destituídos de sentido. Mas em Portugal, pelos vistos, não são.
Mas suponho que teremos de ser tolerantes. Uma das coisas mais curiosas que me ficaram das minhas raras interacções com responsáveis político-partidários é a sua tendência para a obsessão com a comunicação social, com a perseguição que sentem ser-lhes movida pelos jornais ou pela televisão, com as alegadas distorções e manipulações das sondagens ou com o que está por detrás das opiniões de malévolos comentadores. Mas compreendamos que este é, afinal, o "mundo real" dos políticos (e, em grande medida, de muitos jornalistas), só ocasionalmente entremeado por alguns indicadores estatísticos e umas visitas "ao terreno" organizadas pelas estruturais locais dos partidos. Entre eleições, a política é um jogo onde não há golos, como no futebol, ou pontos, como no boxe. Todos querem saber "quem está a ganhar", mas não há outros indicadores que não sejam as tendências das sondagens, os editoriais dos jornais e as notícias das secções de política. Tudo bem. Só se espera que esta obsessão não os faça esquecer que há outro mundo, bem menos irreal, no qual vivem todos os restantes portugueses.