Um presente avariado
No artigo anterior, publicado há quinze dias atrás, abordei uma das disfunções existentes na forma como o referendo está regulado em Portugal: o requisito de um quórum mínimo de 50% dos eleitores para que o resultado seja vinculativo. Esta regra contribui para a abstenção de uma forma indirecta, ao alterar os incentivos dos agentes políticos e sociais com capacidade para mobilizar os eleitores para o voto. Por um lado, a possibilidade da "não vinculatividade" concede aos defensores do statu quo uma forma adicional de obterem o que desejam através da desmobilização dos eleitores, estratégia que, aliás, vem sendo abundantemente usada no caso italiano. Por outro lado, ela faz com que os partidos possam recalcular os custos e os benefícios políticos que lhes podem advir do resultado de um referendo: sempre que uma tomada de uma posição clara sobre um determinado tema comporte riscos de divisões no interior de um partido ou no eleitorado, o preço a pagar por uma estratégia de passividade e ambiguidade pode acabar por não ser - como seria normal - a derrota pura e simples, mas sim um resultado ainda potencialmente aceitável, o da "não vinculatividade".
Esta não é, contudo, a única disfunção existente na forma como o referendo se encontra regulado em Portugal. Entre os muitos critérios que se podem usar para distinguir os diferentes tipos de referendo entre si, um dos mais importantes é o de saber se um referendo pode ocorrer independentemente da vontade de uma maioria parlamentar. Em Portugal, a resposta é simples: a probabilidade de isso suceder é baixíssima. E vale a pena atentarmos no detalhe carinhoso com que os partidos políticos portugueses, ao mesmo tempo que introduziam, em 1997, a possibilidade formal de iniciativas populares de referendo, se dedicaram igualmente a garantir que elas só vingariam como resultado de uma extraordinária e altamente improvável confluência de vontades.
Em primeiro lugar, impuseram para essas iniciativas a recolha de nada menos que 75.000 assinaturas, dez vezes mais, note-se, do que aquilo que é necessário para constituir um partido. Em segundo lugar, excluíram do leque de matérias referendáveis não apenas as matérias constitucionais e orçamentais, mas também quase tudo o que faz parte da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República. E, finalmente, fizeram com que a chegada da proposta de referendo ao Tribunal Constitucional e ao Presidente da República dependesse da sua aprovação por uma maioria parlamentar. É verdade que, para a revisão de 1997, o Partido Socialista - talvez persuadido que a Presidência da República dificilmente escaparia a um candidato por si apoiado - propôs que as iniciativas populares pudessem chegar directamente ao Presidente. Seria interessante saber se o PS defenderia hoje algo semelhante, ou se o PSD reagiria à ideia com o mesmo horror que exprimiu na altura. O que ficou da revisão, contudo, é um conjunto de barreiras possivelmente justificáveis quando tomadas individualmente, mas que em conjunto significam que, a não ser que haja uma pressão da opinião pública suficientemente forte para vergar uma maioria parlamentar, essa maioria nunca terá de assistir a um referendo contra a sua vontade, e muito menos um referendo que tenha origem numa iniciativa popular.
Este fenómeno tem possíveis consequências sobre as quais deveríamos meditar. Os referendos que decorrem da vontade das maiorias servirão sempre um de dois objectivos: ou o de serem meros plebiscitos, através dos quais os governos se limitam a confirmar e demonstrar o apoio popular previsível a uma sua medida política; ou o de serem meros meios de desresponsabilização política, através dos quais se transfere para os eleitores a decisão sobre temas sensíveis que geram divisões no interior dos partidos. O primeiro problema é que nem uns nem outros tenderão a gerar forte participação eleitoral, uns porque o resultado é conhecido à partida, e outros porque esse resultado nunca foi, desde o início, o mais importante. É isto, por exemplo, que já se sabe da longa experiência nos Estados Unidos com referendos a nível estadual, onde, como demonstram Shaun Bowler e Todd Donovan no seu Demanding Choices (University of Michigan Press, 1998), são os referendos que resultam das iniciativas dos cidadãos e não os que emanam das legislaturas estaduais os que contam com maiores taxas de participação.
O segundo problema é que isto significa também que o referendo em Portugal não serve a única função política que seria útil num sistema onde os governos controlam partidos coesos, têm enormes poderes legislativos próprios e enfrentam parlamentos dóceis: a de constituírem um ponto de veto em relação à vontade dos governos e de os estimularem - por receio de referendos que escapem ao seu controlo - a alinhar as suas políticas com as preferências da maioria dos cidadãos. É talvez por isso que, como vem demonstrando o politólogo Simon Hug numa série de trabalhos publicados nos últimos anos, é nos estados norte-americanos onde a iniciativa popular dos referendos se encontra mais constrangida que as políticas públicas mais se afastam das preferências da opinião pública, e é nos países do Leste Europeu onde o mesmo sucede que os níveis de satisfação dos eleitores com a democracia são mais baixos.
Não é de todo garantido que as virtudes da democracia directa sejam maiores e mais importantes do que as suas vantagens. Mas das duas uma: ou nos deixam experimentá-la realmente, ou mais valeria pedirmos aos nossos parlamentares que levassem de volta a versão postiça, desconfiada e disfuncional que, embrulhada em papel vistoso, nos foi oferecida em 1997.
Esta não é, contudo, a única disfunção existente na forma como o referendo se encontra regulado em Portugal. Entre os muitos critérios que se podem usar para distinguir os diferentes tipos de referendo entre si, um dos mais importantes é o de saber se um referendo pode ocorrer independentemente da vontade de uma maioria parlamentar. Em Portugal, a resposta é simples: a probabilidade de isso suceder é baixíssima. E vale a pena atentarmos no detalhe carinhoso com que os partidos políticos portugueses, ao mesmo tempo que introduziam, em 1997, a possibilidade formal de iniciativas populares de referendo, se dedicaram igualmente a garantir que elas só vingariam como resultado de uma extraordinária e altamente improvável confluência de vontades.
Em primeiro lugar, impuseram para essas iniciativas a recolha de nada menos que 75.000 assinaturas, dez vezes mais, note-se, do que aquilo que é necessário para constituir um partido. Em segundo lugar, excluíram do leque de matérias referendáveis não apenas as matérias constitucionais e orçamentais, mas também quase tudo o que faz parte da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República. E, finalmente, fizeram com que a chegada da proposta de referendo ao Tribunal Constitucional e ao Presidente da República dependesse da sua aprovação por uma maioria parlamentar. É verdade que, para a revisão de 1997, o Partido Socialista - talvez persuadido que a Presidência da República dificilmente escaparia a um candidato por si apoiado - propôs que as iniciativas populares pudessem chegar directamente ao Presidente. Seria interessante saber se o PS defenderia hoje algo semelhante, ou se o PSD reagiria à ideia com o mesmo horror que exprimiu na altura. O que ficou da revisão, contudo, é um conjunto de barreiras possivelmente justificáveis quando tomadas individualmente, mas que em conjunto significam que, a não ser que haja uma pressão da opinião pública suficientemente forte para vergar uma maioria parlamentar, essa maioria nunca terá de assistir a um referendo contra a sua vontade, e muito menos um referendo que tenha origem numa iniciativa popular.
Este fenómeno tem possíveis consequências sobre as quais deveríamos meditar. Os referendos que decorrem da vontade das maiorias servirão sempre um de dois objectivos: ou o de serem meros plebiscitos, através dos quais os governos se limitam a confirmar e demonstrar o apoio popular previsível a uma sua medida política; ou o de serem meros meios de desresponsabilização política, através dos quais se transfere para os eleitores a decisão sobre temas sensíveis que geram divisões no interior dos partidos. O primeiro problema é que nem uns nem outros tenderão a gerar forte participação eleitoral, uns porque o resultado é conhecido à partida, e outros porque esse resultado nunca foi, desde o início, o mais importante. É isto, por exemplo, que já se sabe da longa experiência nos Estados Unidos com referendos a nível estadual, onde, como demonstram Shaun Bowler e Todd Donovan no seu Demanding Choices (University of Michigan Press, 1998), são os referendos que resultam das iniciativas dos cidadãos e não os que emanam das legislaturas estaduais os que contam com maiores taxas de participação.
O segundo problema é que isto significa também que o referendo em Portugal não serve a única função política que seria útil num sistema onde os governos controlam partidos coesos, têm enormes poderes legislativos próprios e enfrentam parlamentos dóceis: a de constituírem um ponto de veto em relação à vontade dos governos e de os estimularem - por receio de referendos que escapem ao seu controlo - a alinhar as suas políticas com as preferências da maioria dos cidadãos. É talvez por isso que, como vem demonstrando o politólogo Simon Hug numa série de trabalhos publicados nos últimos anos, é nos estados norte-americanos onde a iniciativa popular dos referendos se encontra mais constrangida que as políticas públicas mais se afastam das preferências da opinião pública, e é nos países do Leste Europeu onde o mesmo sucede que os níveis de satisfação dos eleitores com a democracia são mais baixos.
Não é de todo garantido que as virtudes da democracia directa sejam maiores e mais importantes do que as suas vantagens. Mas das duas uma: ou nos deixam experimentá-la realmente, ou mais valeria pedirmos aos nossos parlamentares que levassem de volta a versão postiça, desconfiada e disfuncional que, embrulhada em papel vistoso, nos foi oferecida em 1997.