A opinião pública e a despenalização do aborto
Em 1992, o cientista político John Zaller escreveu um livro intitulado The nature and origins of mass opinion (Cambridge University Press), onde pretendeu encontrar uma explicação para fenómenos que há muito tempo intrigavam os estudiosos da opinião pública. Quando sujeitos à mesma pergunta de sondagem para sondagem, os mesmos inquiridos dão frequentemente respostas contraditórias. Num único inquérito, muitas pessoas transmitem opiniões diferentes sobre um mesmo tema, dependendo de ligeiras modificações na formulação das perguntas. Sondagens diferentes feitas num curto espaço de tempo podem produzir resultados dramaticamente diferentes, dependendo da linguagem utilizada nas questões ou, tão só, das perguntas que as antecedem. Antes de Zaller, a explicação destes fenómenos tendia a partir do pressuposto que de que eram as imperfeições do método que impediam que acedêssemos de forma fiável às "reais" opiniões dos indivíduos. A resposta de Zaller, contudo, consistiu em virar este pressuposto do avesso: a explicação, segundo ele, é que a maior parte das pessoas não têm verdadeiras opiniões seja sobre o que for.
O que têm são duas outras coisas: "predisposições" e "considerações". As primeiras são crenças e valores muito genéricos, tais como o igualitarismo, o individualismo ou os sentimentos de identificação com os interesses de um grupo. Elas não são, contudo, de aplicação directa quando de trata de opinar sobre um tema concreto. É preciso um grau anormalmente elevado de sofisticação política para conseguir converter de forma coerente e sistemática estas orientações gerais em tomadas de posição concretas e, para além disso, essas predisposições podem tornar-se intrinsecamente contraditórias quando se trata de apreciar todos os aspectos de um mesmo tema. As "considerações" são, por sua vez, argumentos a favor ou contra uma determinada posição, que vão sendo recolhidos pelos indivíduos através da exposição aos meios de comunicação social. Sucede que, nas democracias, circulam muitas considerações de sinal oposto sobre um mesmo tema, e a consequência é que os cidadãos acabam por acolher muitas considerações contraditórias sobre um único assunto. O que acontece, então, quando nos pedem que emitamos uma opinião? Geralmente, damo-la. Mas aquilo que estamos a dar é apenas a aplicação, a um determinado estímulo, de uma das várias considerações que normalmente coexistem na nossa cabeça. A que acaba por "sair" em cada caso concreto depende, em parte, do acaso e, de outro ponto de vista, da maneira o assunto é enquadrado na pergunta.
Vem tudo isto a propósito do referendo que se aproxima sobre a despenalização do aborto e daquilo que nós julgamos saber acerca da "opinião" dos portugueses. Há temas como, por exemplo, a política fiscal ou a segurança social, em quase tudo se joga em termos de conflitos de interesses. Todos podemos apurar de que lado estamos e todos sabemos - mesmo quando fingimos o contrário - que os recursos são finitos. É isto, aliás, que torna possível a negociação e o compromisso. Contudo, tudo muda quando se trata de saber como o Estado deverá regular os comportamentos dos indivíduos. Ao contrário do que sucede com os recursos materiais, a opção de regulação não se mede em quantidades e os interesses envolvidos são difusos. Entram em confronto valores fundamentais que, ainda por cima, podem ser defendidos ao mesmo tempo pela mesma pessoa. Quem pensará que o respeito pela vida ou pela escolha da mulher não merecem ser ambos levados a sério? E como se isto não bastasse, o tema do aborto é, como outros, multi-dimensional. Que razões deverão ser invocáveis? Quantas semanas? Que acompanhamento médico e psicológico, se é que deve existir? Rede pública, clínicas privadas ou ambas? Quem e como é punido se violar a lei, seja ela qual for? A consequência fundamental de tudo isto é que, para usar a linguagem de Zaller, este é um tema sobre o qual todos ou quase todos teremos várias considerações contraditórias e a vários níveis nas nossas cabeças.
Daqui resultam implicações empíricas e um corolário. Nos últimos dias, já vimos sondagens sobre a despenalização do aborto, realizadas num curto espaço de tempo, produzirem resultados altamente discrepantes. As discrepâncias não dependem apenas das opções técnicas seguidas por cada instituto mas também de coisas tão simples como a mera formulação concreta de uma pergunta ou o local exacto no questionário onde ela aparece: o mesmo instituto, entre Fevereiro de 2004 e Outubro de 2006, e usando a mesma metodologia de inquirição e amostragem, já reportou resultados onde a razão entre as percentagens de apoiantes e opositores da despenalização variou entre, respectivamente, quase seis para um e pouco mais de um para um. Também já vimos que, numa única sondagem, enquanto mais de 50 por cento dos inquiridos dizem que votariam sim à pergunta proposta para o referendo, apenas 29 por cento respondem afirmativamente quando se lhes pergunta se o aborto deve ser legal nos casos em que a mulher não deseje ter o filho. Logo, à luz da informação disponível, o que parece prevalecer entre a opinião pública é a incerteza e a ambivalência.
O corolário é mais simples: nada está decidido. Se Zaller tiver razão, dois factores serão absolutamente determinantes no desfecho do referendo. O primeiro é a forma como o assunto vai ser "enquadrado" no discurso mediático. Desse enquadramento depende, em grande medida, que tipo de considerações - favoráveis ou desfavoráveis - se tornarão mais acessíveis e aplicáveis para os eleitores quando de tratar de tomar uma posição. Só para dar um exemplo, um enquadramento novo e que começa a ganhar destaque nalguns órgãos de comunicação social é a ideia de que a despenalização do aborto será fonte de lucro para clínicas privadas estrangeiras que se irão instalar em Portugal. É em torno de coisas como estas que se ganham ou perdem referendos em temas como estes. O segundo factor determinante será a posição dos partidos políticos. A maneira como os eleitores costumam resolver as suas incertezas é olhando para as pistas fornecidas pelos grupos políticos com os quais se identificam. Mas se deles vier apenas ambiguidade e calculismo, a resposta será imprevisível. Foi assim que se decidiu o referendo de 1998. É assim que se decidirá o de 2007.
O que têm são duas outras coisas: "predisposições" e "considerações". As primeiras são crenças e valores muito genéricos, tais como o igualitarismo, o individualismo ou os sentimentos de identificação com os interesses de um grupo. Elas não são, contudo, de aplicação directa quando de trata de opinar sobre um tema concreto. É preciso um grau anormalmente elevado de sofisticação política para conseguir converter de forma coerente e sistemática estas orientações gerais em tomadas de posição concretas e, para além disso, essas predisposições podem tornar-se intrinsecamente contraditórias quando se trata de apreciar todos os aspectos de um mesmo tema. As "considerações" são, por sua vez, argumentos a favor ou contra uma determinada posição, que vão sendo recolhidos pelos indivíduos através da exposição aos meios de comunicação social. Sucede que, nas democracias, circulam muitas considerações de sinal oposto sobre um mesmo tema, e a consequência é que os cidadãos acabam por acolher muitas considerações contraditórias sobre um único assunto. O que acontece, então, quando nos pedem que emitamos uma opinião? Geralmente, damo-la. Mas aquilo que estamos a dar é apenas a aplicação, a um determinado estímulo, de uma das várias considerações que normalmente coexistem na nossa cabeça. A que acaba por "sair" em cada caso concreto depende, em parte, do acaso e, de outro ponto de vista, da maneira o assunto é enquadrado na pergunta.
Vem tudo isto a propósito do referendo que se aproxima sobre a despenalização do aborto e daquilo que nós julgamos saber acerca da "opinião" dos portugueses. Há temas como, por exemplo, a política fiscal ou a segurança social, em quase tudo se joga em termos de conflitos de interesses. Todos podemos apurar de que lado estamos e todos sabemos - mesmo quando fingimos o contrário - que os recursos são finitos. É isto, aliás, que torna possível a negociação e o compromisso. Contudo, tudo muda quando se trata de saber como o Estado deverá regular os comportamentos dos indivíduos. Ao contrário do que sucede com os recursos materiais, a opção de regulação não se mede em quantidades e os interesses envolvidos são difusos. Entram em confronto valores fundamentais que, ainda por cima, podem ser defendidos ao mesmo tempo pela mesma pessoa. Quem pensará que o respeito pela vida ou pela escolha da mulher não merecem ser ambos levados a sério? E como se isto não bastasse, o tema do aborto é, como outros, multi-dimensional. Que razões deverão ser invocáveis? Quantas semanas? Que acompanhamento médico e psicológico, se é que deve existir? Rede pública, clínicas privadas ou ambas? Quem e como é punido se violar a lei, seja ela qual for? A consequência fundamental de tudo isto é que, para usar a linguagem de Zaller, este é um tema sobre o qual todos ou quase todos teremos várias considerações contraditórias e a vários níveis nas nossas cabeças.
Daqui resultam implicações empíricas e um corolário. Nos últimos dias, já vimos sondagens sobre a despenalização do aborto, realizadas num curto espaço de tempo, produzirem resultados altamente discrepantes. As discrepâncias não dependem apenas das opções técnicas seguidas por cada instituto mas também de coisas tão simples como a mera formulação concreta de uma pergunta ou o local exacto no questionário onde ela aparece: o mesmo instituto, entre Fevereiro de 2004 e Outubro de 2006, e usando a mesma metodologia de inquirição e amostragem, já reportou resultados onde a razão entre as percentagens de apoiantes e opositores da despenalização variou entre, respectivamente, quase seis para um e pouco mais de um para um. Também já vimos que, numa única sondagem, enquanto mais de 50 por cento dos inquiridos dizem que votariam sim à pergunta proposta para o referendo, apenas 29 por cento respondem afirmativamente quando se lhes pergunta se o aborto deve ser legal nos casos em que a mulher não deseje ter o filho. Logo, à luz da informação disponível, o que parece prevalecer entre a opinião pública é a incerteza e a ambivalência.
O corolário é mais simples: nada está decidido. Se Zaller tiver razão, dois factores serão absolutamente determinantes no desfecho do referendo. O primeiro é a forma como o assunto vai ser "enquadrado" no discurso mediático. Desse enquadramento depende, em grande medida, que tipo de considerações - favoráveis ou desfavoráveis - se tornarão mais acessíveis e aplicáveis para os eleitores quando de tratar de tomar uma posição. Só para dar um exemplo, um enquadramento novo e que começa a ganhar destaque nalguns órgãos de comunicação social é a ideia de que a despenalização do aborto será fonte de lucro para clínicas privadas estrangeiras que se irão instalar em Portugal. É em torno de coisas como estas que se ganham ou perdem referendos em temas como estes. O segundo factor determinante será a posição dos partidos políticos. A maneira como os eleitores costumam resolver as suas incertezas é olhando para as pistas fornecidas pelos grupos políticos com os quais se identificam. Mas se deles vier apenas ambiguidade e calculismo, a resposta será imprevisível. Foi assim que se decidiu o referendo de 1998. É assim que se decidirá o de 2007.