A sombra de 2009
Em Agosto passado, enquanto os jornais se ocupavam de temas como a carreira profissional de uma directora de um museu, a assembleia geral de um banco e um milheiral, o Estado português editou uma publicação gratuita, com periodicidade anual e 55 páginas a duas colunas, intitulada "Grandes Opções do Plano". O documento proporciona uma leitura bem mais interessante do que se imagina, especialmente na medida em que nos ajuda a compreender o esquema mental dos nossos responsáveis governativos, aquilo que foi feito na primeira metade do mandato e, crucialmente, o ficou por fazer.
Em muitas áreas da governação, a maior parte dos primeiros dois anos e meio parece ter sido consumida a conceber "planos" para os dois anos seguintes. São, se não estou em erro, 48 "planos" oficiais, a que temos de adicionar uma multidão de "estratégias", "programas" e "projectos", desde o PEAASAR ao ENEAPAI, passando pelo PADT e o PAIDPI (não temos, manifestamente, jeito para os acrónimos). Na segurança interna, para além da aquisição de coletes, viaturas e pistolas, o resto do tempo foi quase exclusivamente ocupado a "desenvolver", "reformular", "organizar" e "estruturar" sistemas, "projectar" políticas e definir "modelos". Na política de imigração, para além do alargamento do abono de família aos filhos dos imigrantes com autorização de residência, só em 2008 veremos "um ano de forte implementação da dinâmica de mudança estabelecida no Plano para a Integração dos Imigrantes", seja lá o que isso queira dizer. Na política ambiental, a comparação entre medidas concretas (como a gestão de resíduos) e os planos, estratégias, programas e projectos concebidos é claramente desfavorável às primeiras. E o mesmo pode ser dito em relação a várias outras áreas da governação. Em princípio, não há nada de errado - pelo contrário - com o facto de um governo, ou qualquer outra organização complexa, se preocupar com o planeamento estratégico, e há poucas dúvidas de que, na história da democracia portuguesa, este será o Governo onde esta mentalidade mais prevalece. Contudo, há demasiadas dimensões das políticas públicas onde quem quiser fazer um balanço das reformas efectivamente realizadas ao longo do mandato não tem alternativa senão esperar, com algum cepticismo, para ver o que sucederá nos próximos dois anos.
Em contraste, há outras áreas onde parece ter sucedido exactamente o contrário: os primeiros dois anos e meio concentram quase tudo o que normalmente se conseguiria fazer num mandato e, de facto, muito daquilo que outros governos na Europa - França e Itália vêm à cabeça - apenas sonham poder fazer. Aumentou-se a carga fiscal, inclusivamente sobre os pensionistas, reduziram-se radicalmente os benefícios fiscais, alterou-se a fórmula de cálculo das pensões de forma a reduzir fortemente as pensões futuras, reduziu-se o número de funcionários públicos em mais de 20 mil em dois anos, alinharam-se as suas condições de contratação e o seu sistema de segurança social com os vigentes no sector privado e mudou-se o estatuto dos professores do ensino secundário, só para dar alguns exemplos. Independentemente da bondade das medidas ou da falta dela, a questão verdadeiramente apaixonante é a de saber como tudo isto foi possível. Em Portugal, governos monopartidários, apoiados por uma maioria disciplinada no Parlamento e suficientemente impelidos por situações de crise e pressões externas, parecem poder operar mudanças no statu quo de algumas políticas que são impensáveis noutros países europeus. Fazem-no, ainda por cima, preservando a liderança nas sondagens e níveis de impopularidade inferiores aos da oposição. Daqui a dois anos, quem quiser fazer o balanço da governação Sócrates terá de tentar perceber o que faz com que, em Portugal, governos monopartidários possam fazer aquilo que é uma impossibilidade para governos de coligação, mesmo maioritários. Ou o que faz com que governos de "esquerda" possam fazer aquilo que é impossível para governos de "direita". E quais as características do nosso sistema de organização dos interesses sociais que permitem aos governos esta autonomia estratégica no que respeita às políticas fiscais, laborais e sociais, e a limitam drasticamente noutras políticas sectoriais.
Daqui a exactamente dois anos haverá também, claro, eleições. E tendo em conta o que já vimos, não admira que figuras quer à esquerda - Carvalho da Silva - quer à direita - Maria José Nogueira Pinto - do Governo já tenham vindo explicar que uma nova vitória do PS é quase inevitável. De facto, as áreas da governação onde se continua, tal como no passado, a planear muito e fazer pouco, são também aquelas onde essa inacção dificilmente produzirá, na fase de desenvolvimento da nossa sociedade, quaisquer custos eleitorais. Já aquelas onde se tomaram medidas mais decisivas serviram, apesar do lastro de descontentamento deixado, para neutralizar qualquer oposição à direita do Governo. E foram adoptadas de forma suficientemente precoce para que, agora, se possa começar a pensar em recuperar os descontentes. Os eleitores tendem a reagir a tendências recentes, não a tendências de longo prazo: se as previsões estiverem correctas, com inflação e desemprego estáveis e crescimento económico acima dos dois por cento em 2008, o Governo não tem muito a temer nas próximas eleições. Resta apenas saber, claro, o que irá o Governo fazer em relação às duas principais questões bicudas que ficaram por responder: como se vai mudar a legislação laboral e - a mais difícil de todas - garantir a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde. Mas, aqui, a sombra de 2009 já se alarga rapidamente.
Em muitas áreas da governação, a maior parte dos primeiros dois anos e meio parece ter sido consumida a conceber "planos" para os dois anos seguintes. São, se não estou em erro, 48 "planos" oficiais, a que temos de adicionar uma multidão de "estratégias", "programas" e "projectos", desde o PEAASAR ao ENEAPAI, passando pelo PADT e o PAIDPI (não temos, manifestamente, jeito para os acrónimos). Na segurança interna, para além da aquisição de coletes, viaturas e pistolas, o resto do tempo foi quase exclusivamente ocupado a "desenvolver", "reformular", "organizar" e "estruturar" sistemas, "projectar" políticas e definir "modelos". Na política de imigração, para além do alargamento do abono de família aos filhos dos imigrantes com autorização de residência, só em 2008 veremos "um ano de forte implementação da dinâmica de mudança estabelecida no Plano para a Integração dos Imigrantes", seja lá o que isso queira dizer. Na política ambiental, a comparação entre medidas concretas (como a gestão de resíduos) e os planos, estratégias, programas e projectos concebidos é claramente desfavorável às primeiras. E o mesmo pode ser dito em relação a várias outras áreas da governação. Em princípio, não há nada de errado - pelo contrário - com o facto de um governo, ou qualquer outra organização complexa, se preocupar com o planeamento estratégico, e há poucas dúvidas de que, na história da democracia portuguesa, este será o Governo onde esta mentalidade mais prevalece. Contudo, há demasiadas dimensões das políticas públicas onde quem quiser fazer um balanço das reformas efectivamente realizadas ao longo do mandato não tem alternativa senão esperar, com algum cepticismo, para ver o que sucederá nos próximos dois anos.
Em contraste, há outras áreas onde parece ter sucedido exactamente o contrário: os primeiros dois anos e meio concentram quase tudo o que normalmente se conseguiria fazer num mandato e, de facto, muito daquilo que outros governos na Europa - França e Itália vêm à cabeça - apenas sonham poder fazer. Aumentou-se a carga fiscal, inclusivamente sobre os pensionistas, reduziram-se radicalmente os benefícios fiscais, alterou-se a fórmula de cálculo das pensões de forma a reduzir fortemente as pensões futuras, reduziu-se o número de funcionários públicos em mais de 20 mil em dois anos, alinharam-se as suas condições de contratação e o seu sistema de segurança social com os vigentes no sector privado e mudou-se o estatuto dos professores do ensino secundário, só para dar alguns exemplos. Independentemente da bondade das medidas ou da falta dela, a questão verdadeiramente apaixonante é a de saber como tudo isto foi possível. Em Portugal, governos monopartidários, apoiados por uma maioria disciplinada no Parlamento e suficientemente impelidos por situações de crise e pressões externas, parecem poder operar mudanças no statu quo de algumas políticas que são impensáveis noutros países europeus. Fazem-no, ainda por cima, preservando a liderança nas sondagens e níveis de impopularidade inferiores aos da oposição. Daqui a dois anos, quem quiser fazer o balanço da governação Sócrates terá de tentar perceber o que faz com que, em Portugal, governos monopartidários possam fazer aquilo que é uma impossibilidade para governos de coligação, mesmo maioritários. Ou o que faz com que governos de "esquerda" possam fazer aquilo que é impossível para governos de "direita". E quais as características do nosso sistema de organização dos interesses sociais que permitem aos governos esta autonomia estratégica no que respeita às políticas fiscais, laborais e sociais, e a limitam drasticamente noutras políticas sectoriais.
Daqui a exactamente dois anos haverá também, claro, eleições. E tendo em conta o que já vimos, não admira que figuras quer à esquerda - Carvalho da Silva - quer à direita - Maria José Nogueira Pinto - do Governo já tenham vindo explicar que uma nova vitória do PS é quase inevitável. De facto, as áreas da governação onde se continua, tal como no passado, a planear muito e fazer pouco, são também aquelas onde essa inacção dificilmente produzirá, na fase de desenvolvimento da nossa sociedade, quaisquer custos eleitorais. Já aquelas onde se tomaram medidas mais decisivas serviram, apesar do lastro de descontentamento deixado, para neutralizar qualquer oposição à direita do Governo. E foram adoptadas de forma suficientemente precoce para que, agora, se possa começar a pensar em recuperar os descontentes. Os eleitores tendem a reagir a tendências recentes, não a tendências de longo prazo: se as previsões estiverem correctas, com inflação e desemprego estáveis e crescimento económico acima dos dois por cento em 2008, o Governo não tem muito a temer nas próximas eleições. Resta apenas saber, claro, o que irá o Governo fazer em relação às duas principais questões bicudas que ficaram por responder: como se vai mudar a legislação laboral e - a mais difícil de todas - garantir a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde. Mas, aqui, a sombra de 2009 já se alarga rapidamente.
Etiquetas: ciclo eleitoral, economia, governo, reformas estruturais