Os politólogos
Este é o meu último artigo para o PÚBLICO. A conclusão de um projecto no Instituto de Ciências Sociais sobre o comportamento eleitoral e a criação de um novo projecto, ligado ao estudo da “qualidade da democracia”, vão exigir um nível de dedicação que me impede de cumprir este compromisso regular. Agradeço ao PÚBLICO, especialmente ao seu director, a oportunidade e a liberdade que me foram concedidas nestes três anos. Talvez um dia regresse, se as nossas vontades se conjugarem.
Termino esta colaboração com um tema, receio, algo “umbiguista”: qual o papel que os politólogos podem desempenhar no debate político? O tema suscitou um duríssimo artigo de Alain Garrigou numa edição recente do Le Monde Diplomatique, intitulado “Os abusos da autoridade científica”. Para Garrigou, a omnipresença dos politólogos nos meios de comunicação social franceses tem efeitos negativos sobre o debate político. “Ungidos da autoridade de uma opinião pública soberana revelada pela alquimia das sondagens”, eles partilham orientações ideológicas semelhantes, que escondem por detrás de uma capa de pretensa cientificidade, atestada pelos seus títulos académicos. Nada fazem senão pronunciar-se sobre os atributos, cálculos e estratégias das personalidades políticas, emitir “profecias sem riscos, porque logo esquecidas” e explicações pseudo-científicas e post hoc de eventos correntes. Em Portugal, um diagnóstico parecido foi feito há pouco tempo num conhecido blogue. João Galamba, no Jugular, criticava o papel dos politólogos portugueses nos debates sobre a política: interessados apenas nos factos e não nos valores, falando da política como uma realidade que lhes é exterior, os politólogos transmitem uma visão meramente “táctica” da realidade que empobrece a vida política.
Tudo isto faz-me recordar que, nos anos em que vivi nos Estados Unidos - a pátria da Ciência Política moderna e da maior associação profissional da disciplina - foram raríssimas as ocasiões em que vi politólogos nos ecrãs de televisão. E não foram poucas as queixas que ouvi na altura de colegas e professores sobre isto. Para os politólogos americanos, é a sua ausência (ou pelo menos da sua investigação e ideias) dos media, não a sua presença, que empobrece o debate. Este encontra-se quase completamente ocupado por políticos e por pundits como Bill O’Reilly, Keith Olbermann e Sean Hannity, estes últimos cumprindo a função de comentadores supostamente informados mas, na prática, fazendo parte de um sistema de produção de opiniões cada vez mais politizado e partidarizado, e cuja relação com alguns factos básicos conhecidos sobre a vida política é, no mínimo, problemática. Há quem ache até que, em parte, a responsabilidade é dos próprios politólogos americanos: há quase dez anos, num artigo na New Republic, Jonathan Cohn defendia que a Ciência Política americana ter-se-ia “tecnicizado” a um ponto tal que as suas principais ideias e conclusões se teriam tornado incomunicáveis ao grande público. Pessoas como James Q. Wilson, uma figura central do estudo empírico e científico dos fenómenos políticos mas também um “intelectual público” ouvido nos media, pertenciam ao passado. Sobrava Samuel Huntington. Hoje, nem ele. Com os chamados “media sociais”, as coisas estão a mudar, mas esta invisibilidade permanece nos media tradicionais.
Sugerir que a ausência dos politólogos - especialmente daqueles que “procuram separar análise política da sua posição política particular” - seria algo benéfico para o debate político parece-me tão insensato como defender, por exemplo, a ausência dos criminólogos, dos sociólogos, dos juristas e dos economistas dos debates sobre o crime, a sociedade, o direito ou a economia. Quem conhece as polémicas que rapidamente emergem quando se põe mais do que uma destas pessoas numa mesma sala sabe que nenhuma delas tem uma relação privilegiada com a Verdade. Mas têm alguns atributos particulares que não são irrelevantes: uma relação habitual com as fontes de informação empírica sobre os assuntos de que são especialistas; a inserção numa comunidade que lhes impõe custos de reputação se distorcerem deliberadamente essa informação; e uma preocupação com inserir aquilo que dizem numa teoria qualquer para explicar por que razão o mundo é como é. Têm “opiniões”? Influenciam aquilo que dizem? Obviamente. E é perfeitamente legítimo que, como outros cidadãos, tomem posições abertamente políticas, tal como vem sucedendo, por estes dias, com muitos economistas portugueses. Mas pedir-lhes uma declaração obrigatória de posições políticas de cada vez que abrem a boca ou que reconduzam tudo aquilo que concluem aos termos em que políticos e pundits prefeririam que os debates se dessem parece-me empobrecedor, e não enriquecedor, desses debates. Especialmente num contexto como o português. Uma das coisas que me ocupou bastante aqui nestes últimos três anos foi a notável resistência de muitos comentadores, dirigentes políticos e responsáveis de organismos públicos a substituírem as suas “opiniões sobre factos” por algumas das coisas que, com inevitáveis limitações, se julga saber sobre a sociedade e a política portuguesas. Não me parece que os principais problemas do debate e das políticas públicas em Portugal sejam a falta de opiniões ou a excessiva relação com a realidade.
Mas dito isto, tenho de reconhecer alguma razão a Garrigou e Galamba. A verdade é que não há quase dia em que abra o jornal ou ligue a televisão sem encontrar politólogos, apresentados com tais, a pronunciarem-se sobre as últimas declarações do político x, as consequências da decisão y ou aquilo que irá acontecer se z. Por vezes, talvez mais do que, em retrospectiva, teria sido desejável, um deles era eu. Em parte, é compreensível. Com redacções encolhidas e a multiplicação dos estagiários, escrever um artigo “de fundo” com a ajuda de quatro telefonemas deve ser uma tentação irresistível. A busca da “imparcialidade” e da “objectividade” leva à procura de fontes que possam ser apresentadas como dispondo desses atributos. A pressão da actualidade faz com que aquilo que interessa aos jornalistas seja “prever” um evento concreto ou as suas consequências, matéria para a qual, sabemos de inúmeras situações passadas, os cientistas sociais não se encontram necessariamente mais capacitados que outra pessoa qualquer. E resistir as estas solicitações é igualmente difícil, na medida em pode parecer uma assunção de irrelevância daquilo que fazemos para os debates que interessam. Mas pergunto-me se não valerá a pena tentar resistir mais um bocadinho. O nosso “negócio” é simples: descrever o mundo político o melhor possível e procurar explicações plausíveis para que ele seja como é. Só isso já é bastante. Para pundits, creio, já bastam os que existem.
Termino esta colaboração com um tema, receio, algo “umbiguista”: qual o papel que os politólogos podem desempenhar no debate político? O tema suscitou um duríssimo artigo de Alain Garrigou numa edição recente do Le Monde Diplomatique, intitulado “Os abusos da autoridade científica”. Para Garrigou, a omnipresença dos politólogos nos meios de comunicação social franceses tem efeitos negativos sobre o debate político. “Ungidos da autoridade de uma opinião pública soberana revelada pela alquimia das sondagens”, eles partilham orientações ideológicas semelhantes, que escondem por detrás de uma capa de pretensa cientificidade, atestada pelos seus títulos académicos. Nada fazem senão pronunciar-se sobre os atributos, cálculos e estratégias das personalidades políticas, emitir “profecias sem riscos, porque logo esquecidas” e explicações pseudo-científicas e post hoc de eventos correntes. Em Portugal, um diagnóstico parecido foi feito há pouco tempo num conhecido blogue. João Galamba, no Jugular, criticava o papel dos politólogos portugueses nos debates sobre a política: interessados apenas nos factos e não nos valores, falando da política como uma realidade que lhes é exterior, os politólogos transmitem uma visão meramente “táctica” da realidade que empobrece a vida política.
Tudo isto faz-me recordar que, nos anos em que vivi nos Estados Unidos - a pátria da Ciência Política moderna e da maior associação profissional da disciplina - foram raríssimas as ocasiões em que vi politólogos nos ecrãs de televisão. E não foram poucas as queixas que ouvi na altura de colegas e professores sobre isto. Para os politólogos americanos, é a sua ausência (ou pelo menos da sua investigação e ideias) dos media, não a sua presença, que empobrece o debate. Este encontra-se quase completamente ocupado por políticos e por pundits como Bill O’Reilly, Keith Olbermann e Sean Hannity, estes últimos cumprindo a função de comentadores supostamente informados mas, na prática, fazendo parte de um sistema de produção de opiniões cada vez mais politizado e partidarizado, e cuja relação com alguns factos básicos conhecidos sobre a vida política é, no mínimo, problemática. Há quem ache até que, em parte, a responsabilidade é dos próprios politólogos americanos: há quase dez anos, num artigo na New Republic, Jonathan Cohn defendia que a Ciência Política americana ter-se-ia “tecnicizado” a um ponto tal que as suas principais ideias e conclusões se teriam tornado incomunicáveis ao grande público. Pessoas como James Q. Wilson, uma figura central do estudo empírico e científico dos fenómenos políticos mas também um “intelectual público” ouvido nos media, pertenciam ao passado. Sobrava Samuel Huntington. Hoje, nem ele. Com os chamados “media sociais”, as coisas estão a mudar, mas esta invisibilidade permanece nos media tradicionais.
Sugerir que a ausência dos politólogos - especialmente daqueles que “procuram separar análise política da sua posição política particular” - seria algo benéfico para o debate político parece-me tão insensato como defender, por exemplo, a ausência dos criminólogos, dos sociólogos, dos juristas e dos economistas dos debates sobre o crime, a sociedade, o direito ou a economia. Quem conhece as polémicas que rapidamente emergem quando se põe mais do que uma destas pessoas numa mesma sala sabe que nenhuma delas tem uma relação privilegiada com a Verdade. Mas têm alguns atributos particulares que não são irrelevantes: uma relação habitual com as fontes de informação empírica sobre os assuntos de que são especialistas; a inserção numa comunidade que lhes impõe custos de reputação se distorcerem deliberadamente essa informação; e uma preocupação com inserir aquilo que dizem numa teoria qualquer para explicar por que razão o mundo é como é. Têm “opiniões”? Influenciam aquilo que dizem? Obviamente. E é perfeitamente legítimo que, como outros cidadãos, tomem posições abertamente políticas, tal como vem sucedendo, por estes dias, com muitos economistas portugueses. Mas pedir-lhes uma declaração obrigatória de posições políticas de cada vez que abrem a boca ou que reconduzam tudo aquilo que concluem aos termos em que políticos e pundits prefeririam que os debates se dessem parece-me empobrecedor, e não enriquecedor, desses debates. Especialmente num contexto como o português. Uma das coisas que me ocupou bastante aqui nestes últimos três anos foi a notável resistência de muitos comentadores, dirigentes políticos e responsáveis de organismos públicos a substituírem as suas “opiniões sobre factos” por algumas das coisas que, com inevitáveis limitações, se julga saber sobre a sociedade e a política portuguesas. Não me parece que os principais problemas do debate e das políticas públicas em Portugal sejam a falta de opiniões ou a excessiva relação com a realidade.
Mas dito isto, tenho de reconhecer alguma razão a Garrigou e Galamba. A verdade é que não há quase dia em que abra o jornal ou ligue a televisão sem encontrar politólogos, apresentados com tais, a pronunciarem-se sobre as últimas declarações do político x, as consequências da decisão y ou aquilo que irá acontecer se z. Por vezes, talvez mais do que, em retrospectiva, teria sido desejável, um deles era eu. Em parte, é compreensível. Com redacções encolhidas e a multiplicação dos estagiários, escrever um artigo “de fundo” com a ajuda de quatro telefonemas deve ser uma tentação irresistível. A busca da “imparcialidade” e da “objectividade” leva à procura de fontes que possam ser apresentadas como dispondo desses atributos. A pressão da actualidade faz com que aquilo que interessa aos jornalistas seja “prever” um evento concreto ou as suas consequências, matéria para a qual, sabemos de inúmeras situações passadas, os cientistas sociais não se encontram necessariamente mais capacitados que outra pessoa qualquer. E resistir as estas solicitações é igualmente difícil, na medida em pode parecer uma assunção de irrelevância daquilo que fazemos para os debates que interessam. Mas pergunto-me se não valerá a pena tentar resistir mais um bocadinho. O nosso “negócio” é simples: descrever o mundo político o melhor possível e procurar explicações plausíveis para que ele seja como é. Só isso já é bastante. Para pundits, creio, já bastam os que existem.