Sobre a "personalização" da política
A propósito do congresso do PS tem-se falado bastante de "personalização" da política e das suas inúmeras perversidades. O mantra que se segue habitualmente é o seguinte. Hoje, já não se discutem ideias na política. Os eleitores, em vez de escolherem entre partidos e programas alternativos, escolhem "personalidades". Estas são-nos "vendidas" como um produto, por técnicos de marketing que recorrem a sondagens para determinar o que os candidatos devem dizer e como o devem dizer. Daqui decorrem também alguns chavões: o primado das pessoas sobre as ideias, da forma sobre o conteúdo, do meio sobre a mensagem, etc., etc., etc. Como Marina Costa Lobo já notou num artigo recente no Jornal de Negócios, e ao contrário do que possa parecer aos mais distraídos, a "personalização" da política em Portugal não começou na semana passada nem foi inventada pelo PS. Mas gostaria de ir um pouco mais longe na crítica a este tipo de ideias feitas.
É realmente difícil contestar a noção de que, nas democracias contemporâneas, os eleitores se encontram cada vez mais "desalinhados". Isto significa que a sua pertença a um determinado grupo social é cada vez menos capaz de nos ajudar a prever em quem votarão (em Portugal nunca ajudou muito) e que há cada vez menos eleitores que incluem a sua proximidade psicológica a um determinado partido como elemento relevante da sua identidade política e social. Naturalmente, isto abre espaço a que o voto seja muito ditado por factores menos estáveis, tais como, por exemplo, a opinião que os eleitores formam sobre as características e atributos de um candidato, e é isso mesmo que a investigação sobre o tema nas democracias ocidentais tem demonstrado.
Contudo, isto não equivale a dizer que o centramento das campanhas e das escolhas em torno dos candidatos impede a discussão de ideias, a avaliação de realidades substantivas ou a racionalidade política. Os críticos da "personalização" da política falam disto como se as eleições se tivessem transformado num mero concurso de beleza ou, em alternativa, como se estivéssemos a regressar à Alemanha de Goebbels. Como se as opiniões que os eleitores têm dos líderes partidários fossem completamente independentes das suas propostas, da clareza e competência com que as transmitem (um bom indicador da sua qualidade como governantes ou potenciais governantes), das promessas que fazem e cumprem (ou não), do desempenho do governo ou dos partidos que lideram ou da situação social e económica. Mas não são, como qualquer análise da relação entre os dados da economia e a popularidade do primeiro-ministro rapidamente revela. O facto de todos estes factores relevantes à luz de qualquer teoria da democracia serem agora mais corporizados em pessoas concretas não os torna menos importantes e consequentes. De resto, como assinala o politólogo Ian McAllister num ensaio sobre o tema no Oxford Handbook of Political Behavior, essa corporização vem ao encontro daquilo que é uma aspiração legítima dos eleitores e um aspecto fundamental do bom funcionamento da democracia: a possibilidade de identificar claramente um responsável e de o recompensar ou punir pelo seu desempenho.
Mas imaginemos, por momentos, que os atributos dos líderes que realmente contam para os eleitores seriam "não-políticos", tais como aspectos da sua história de vida ou aparentes traços de personalidade. Deveríamos ficar assim tão preocupados? Não necessariamente. Vários estudos sintetizados num artigo de 2004 de Gian Vittorio Caprara e Philip Zimbardo na American Psychologist mostram que os eleitores formam de facto percepções sobre os traços de personalidade dos candidatos, organizando-as em torno de algumas dimensões principais: se os vêem como vigorosos e assertivos; empáticos e amigáveis; conscenciosos e auto-contidos; ou abertos a novas ideias, pessoas e experiências. Sem surpresa, os eleitores tendem a preferir os candidatos cujos traços de personalidade apercebidos se aproximam mais das suas próprias características. Mas mais interessante ainda, a ênfase num ou noutro traço de personalidade reflecte os diferentes valores e posições ideológicas quer dos eleitores quer dos candidatos. À direita, prevalecem a energia e a auto-contenção, mais próximos dos valores da responsabilidade individual, da autoridade e do conservadorismo. À esquerda, prevalecem a empatia, a abertura e o universalismo, mais próximos dos valores da igualdade, da justiça social e do cosmopolitismo. Em face de escolhas muito complexas e submersos em informação política, os eleitores podem recorrer a pistas tão simples como estas e, mesmo assim, "acertar". Em 2005, em Portugal, os eleitores de direita abandonaram um candidato visto como empático, mas inconstante e diletante. Hoje, os eleitores de esquerda afastam-se de um candidato visto como crispado e autoritário. Terão errado ou estarão a errar no fundamental?
Há ainda outras fraquezas nas críticas habituais à "personalização" da política. Elas ignoram, por exemplo, que a atenção obsessiva dos eleitores e da comunicação social aos movimentos e às declarações dos políticos pode, em sistemas onde o mérito realmente conte numa carreira política (não digo que seja o nosso), constituir uma provação à qual só podem sobreviver pessoas com qualidades verdadeiramente invulgares. Os exemplos do (relativo) sucesso de pessoas como John McCain e Hillary Clinton, do (total) sucesso de alguém como Barack Obama e do fracasso de Sarah Palin nas últimas eleições americanas servem para mostrar que nem tudo tem de ser mau na "personalização" e "mediatização" da política. Mais importante ainda, os críticos presumem a existência de um passado onde a generalidade da população discutia todos os dias "grandes ideias" sobre a política. É duvidoso que, mesmo nas democracias mais antigas, esse passado mítico tenha alguma vez existido para além da esfera das elites. A moderna e verdadeira democracia de massas é um regime em que não basta que igrejas, sindicatos e caciques locais se limitem, como dantes, a arregimentar eleitores. É cada vez mais um regime no qual cada eleitor é um indivíduo que tem de ser persuadido. A "personalização" e a "mediatização" da política, o marketing político, as agências de comunicação e a omnipresença das sondagens são filhas desse regime. Nem tudo é bom. Mas quem quiser voltar para trás não me leva consigo.
Dito isto, o "Movimento Sócrates 2009" é uma boa ideia? Não, é péssima. Em 2005, Sócrates era, para muita gente, parte da solução. Hoje, no actual contexto, é parte do problema. Não há nem haverá "movimento" de espécie alguma, e a aproximação a uma linguagem de esquerda é, digamos assim, canhestra. Mas a culpa não é da "personalização" da política ou do marketing político. É só do mau marketing.
É realmente difícil contestar a noção de que, nas democracias contemporâneas, os eleitores se encontram cada vez mais "desalinhados". Isto significa que a sua pertença a um determinado grupo social é cada vez menos capaz de nos ajudar a prever em quem votarão (em Portugal nunca ajudou muito) e que há cada vez menos eleitores que incluem a sua proximidade psicológica a um determinado partido como elemento relevante da sua identidade política e social. Naturalmente, isto abre espaço a que o voto seja muito ditado por factores menos estáveis, tais como, por exemplo, a opinião que os eleitores formam sobre as características e atributos de um candidato, e é isso mesmo que a investigação sobre o tema nas democracias ocidentais tem demonstrado.
Contudo, isto não equivale a dizer que o centramento das campanhas e das escolhas em torno dos candidatos impede a discussão de ideias, a avaliação de realidades substantivas ou a racionalidade política. Os críticos da "personalização" da política falam disto como se as eleições se tivessem transformado num mero concurso de beleza ou, em alternativa, como se estivéssemos a regressar à Alemanha de Goebbels. Como se as opiniões que os eleitores têm dos líderes partidários fossem completamente independentes das suas propostas, da clareza e competência com que as transmitem (um bom indicador da sua qualidade como governantes ou potenciais governantes), das promessas que fazem e cumprem (ou não), do desempenho do governo ou dos partidos que lideram ou da situação social e económica. Mas não são, como qualquer análise da relação entre os dados da economia e a popularidade do primeiro-ministro rapidamente revela. O facto de todos estes factores relevantes à luz de qualquer teoria da democracia serem agora mais corporizados em pessoas concretas não os torna menos importantes e consequentes. De resto, como assinala o politólogo Ian McAllister num ensaio sobre o tema no Oxford Handbook of Political Behavior, essa corporização vem ao encontro daquilo que é uma aspiração legítima dos eleitores e um aspecto fundamental do bom funcionamento da democracia: a possibilidade de identificar claramente um responsável e de o recompensar ou punir pelo seu desempenho.
Mas imaginemos, por momentos, que os atributos dos líderes que realmente contam para os eleitores seriam "não-políticos", tais como aspectos da sua história de vida ou aparentes traços de personalidade. Deveríamos ficar assim tão preocupados? Não necessariamente. Vários estudos sintetizados num artigo de 2004 de Gian Vittorio Caprara e Philip Zimbardo na American Psychologist mostram que os eleitores formam de facto percepções sobre os traços de personalidade dos candidatos, organizando-as em torno de algumas dimensões principais: se os vêem como vigorosos e assertivos; empáticos e amigáveis; conscenciosos e auto-contidos; ou abertos a novas ideias, pessoas e experiências. Sem surpresa, os eleitores tendem a preferir os candidatos cujos traços de personalidade apercebidos se aproximam mais das suas próprias características. Mas mais interessante ainda, a ênfase num ou noutro traço de personalidade reflecte os diferentes valores e posições ideológicas quer dos eleitores quer dos candidatos. À direita, prevalecem a energia e a auto-contenção, mais próximos dos valores da responsabilidade individual, da autoridade e do conservadorismo. À esquerda, prevalecem a empatia, a abertura e o universalismo, mais próximos dos valores da igualdade, da justiça social e do cosmopolitismo. Em face de escolhas muito complexas e submersos em informação política, os eleitores podem recorrer a pistas tão simples como estas e, mesmo assim, "acertar". Em 2005, em Portugal, os eleitores de direita abandonaram um candidato visto como empático, mas inconstante e diletante. Hoje, os eleitores de esquerda afastam-se de um candidato visto como crispado e autoritário. Terão errado ou estarão a errar no fundamental?
Há ainda outras fraquezas nas críticas habituais à "personalização" da política. Elas ignoram, por exemplo, que a atenção obsessiva dos eleitores e da comunicação social aos movimentos e às declarações dos políticos pode, em sistemas onde o mérito realmente conte numa carreira política (não digo que seja o nosso), constituir uma provação à qual só podem sobreviver pessoas com qualidades verdadeiramente invulgares. Os exemplos do (relativo) sucesso de pessoas como John McCain e Hillary Clinton, do (total) sucesso de alguém como Barack Obama e do fracasso de Sarah Palin nas últimas eleições americanas servem para mostrar que nem tudo tem de ser mau na "personalização" e "mediatização" da política. Mais importante ainda, os críticos presumem a existência de um passado onde a generalidade da população discutia todos os dias "grandes ideias" sobre a política. É duvidoso que, mesmo nas democracias mais antigas, esse passado mítico tenha alguma vez existido para além da esfera das elites. A moderna e verdadeira democracia de massas é um regime em que não basta que igrejas, sindicatos e caciques locais se limitem, como dantes, a arregimentar eleitores. É cada vez mais um regime no qual cada eleitor é um indivíduo que tem de ser persuadido. A "personalização" e a "mediatização" da política, o marketing político, as agências de comunicação e a omnipresença das sondagens são filhas desse regime. Nem tudo é bom. Mas quem quiser voltar para trás não me leva consigo.
Dito isto, o "Movimento Sócrates 2009" é uma boa ideia? Não, é péssima. Em 2005, Sócrates era, para muita gente, parte da solução. Hoje, no actual contexto, é parte do problema. Não há nem haverá "movimento" de espécie alguma, e a aproximação a uma linguagem de esquerda é, digamos assim, canhestra. Mas a culpa não é da "personalização" da política ou do marketing político. É só do mau marketing.
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