Ainda Lisboa e os automóveis
Há quinze dias, escrevi aqui sobre os efeitos positivos conhecidos da introdução de uma "taxa de congestão" sobre os veículos que entram no centro das cidades de Londres e Estocolmo. Critiquei alguns dos argumentos normalmente utilizados para afastar a possibilidade da aplicação de um sistema congénere na cidade de Lisboa. Recebi algumas críticas ao que escrevi, que me pareceram suficientemente interessantes para voltar a escrever sobre o assunto.
Um primeiro tipo de críticas invocou "direitos". Quem mora fora de Lisboa - ou de uma qualquer área que dentro do concelho se defina como "centro" - tem tanto "direito à cidade" como os que lá moram. Há aqui três falácias. A primeira consiste em supor que a introdução de taxas para entrar em Lisboa de automóvel retira "direito à cidade", como se não houvesse outras formas de entrar e circular em Lisboa e como se o excesso de trânsito não fosse, ele próprio, atentatório do "direito à cidade". A segunda consiste em supor que a faculdade de circular de automóvel por onde muito bem se entenda é um "direito" ilimitado. O problema é que, mesmo que fosse um "direito", não há cidade nenhuma no mundo - à excepção talvez de Mogadíscio e outras cidades de países onde a existência de um estado é duvidosa - onde esse direito seja ilimitado. Território e estradas são bens comuns, cuja utilização o Estado e as autarquias têm a obrigação de regular. A terceira falácia consiste em supor que a introdução de uma taxa de congestão à entrada da cidade exclui a imposição de custos para a circulação dos residentes. Não exclui. Tecnicamente, a solução pode tornar-se mais complicada, mas pode ser simplificada se os residentes pagarem mais do que pagam hoje por lugares de estacionamento ao pé de sua casa ou, genericamente, num imposto municipal sobre veículos. Mas neste capítulo da "igualdade de direitos" - a terminologia é inadequada, mas enfim - entre residentes e não residentes, há também três coisas que importa ter em conta. Primeiro, a utilização do carro na cidade tem externalidades negativas que incidem desproporcionalmente sobre os residentes em comparação com os não residentes, pelo que o custo tem sempre de ser superior para os segundos. Segundo, este diferencial pode ser manipulado e, eventualmente, aumentado, se se quiser usá-lo para dar mais incentivos para a fixação no centro. Terceiro, e mais importante, toda esta discussão sobre "igualdade de direitos" ignora completamente os direitos daqueles que, fora ou dentro da cidade, não circulam de automóvel.
Isto leva-nos para o segundo tipo de críticas: as que invocam preocupações de equidade social. Afinal, portagens à entrada da cidade incidiriam sobre os "pobres" residentes nas áreas suburbanas, com o único efeito de melhorarem a qualidade de vida dos "ricos" residentes. Deixemos de lado a validade de uma análise que só vê "pobres" na linha do Estoril e "ricos" na Ajuda, Marvila ou S. Jorge de Arroios. Mais importante é notar o seguinte. Primeiro, os mais "pobres" não vêm de carro para Lisboa nem andam de carro em Lisboa. Vêm e circulam de transportes públicos, e têm depois, ainda por cima, de suportar os efeitos do uso do automóvel por outros, entre eles a drástica degradação da qualidade de serviço dos transportes públicos causada pelo excesso de tráfego de automóveis particulares. São eles os principais prejudicados pela actual situação. Para além disso, como recorda Nicolás Stier, professor na Columbia University, a propósito da possível introdução de um sistema semelhante em Manhattan, as - importantes - preocupações com a equidade do sistema podem ser concretizadas de diversas formas, tais como, por exemplo, usando as receitas para melhorar os transportes públicos nas áreas mal servidas ou tornando o montante pago em taxas de circulação parcialmente dedutível para famílias com mais baixos rendimentos. O ponto central sobre a questão da equidade é, afinal, o seguinte: como assinalam Jonas Eliasson e Lars-Göran Mattsson num estudo sobre a taxa de congestão de Estocolmo e, precisamente, os seus efeitos diferenciais sobre grupos sociais concretos, as consequências redistributivas de um sistema deste género dependem da forma como ele é desenhado e, crucialmente, da forma como as suas receitas são aplicadas. No caso de Estocolmo, os autores concluem que a taxa acabou por ter efeitos progressivos (e não regressivos) e os custos incidiram desproporcionalmente sobre os residentes do centro com mais elevados rendimentos. Dependendo do desenho do sistema, pode não ser assim, mas também não tem de ser o contrário.
O último tipo de críticas baseia-se na ideia de que um sistema que tome em conta todos estes aspectos é uma impossibilidade prática em relação à qual devemos ser profundamente cépticos. Os críticos não acreditam que as receitas de uma taxa de congestão viessem a ser de facto aplicadas na melhoria dos transportes públicos de acesso à cidade. "As portagens que já são pagas para entrar em Lisboa nunca, até hoje, foram utilizadas para reforçar o sistema público de transportes", informa-nos João Pinto e Castro no blogue Jugular. A consequência seria que os residentes dos subúrbios teriam mais dificuldades a chegar a Lisboa. Terrenos e casas em Lisboa ficariam mais caros, levando a que pessoas e empresas procurassem outros concelhos para se localizarem. Em alternativa, João Pinto e Castro propõe outra via, "a única que nos levará a algum sítio onde vale a pena ir: a constituição da região político-administrativa de Lisboa".
A resposta é típica daquilo a que, um dia, outro economista chamou a "retórica da reacção": um pessimismo supostamente "realista", que aponta efeitos nulos ou mesmo perversos a uma proposta de mudança, e que avança, em alternativa, um chavão genérico. Mas se é "pessimismo realista" que queremos, aí vai: enquanto não houver barreiras significativas à entrada de veículos em Lisboa, as câmaras dos concelhos limítrofes e o Governo podem ficar descansados. Podem continuar a acrescentar faixas de rodagem às estradas que acedem a Lisboa, sem que as pessoas que lá vivem sintam real necessidade de exigir mais e melhores transportes públicos, especialmente dos locais onde vivem para os terminais ferroviários e fluviais. Podem dar prioridade a mais umas rotundas com fontes no meio, em vez de construírem parques de estacionamento junto a esses terminais. Podem continuar a dizer que "não há meios". Que o "verdadeiro problema" é outro (é sempre outro). E podem fazer reuniões, seminários e debates sobre esse "verdadeiro problema". Por exemplo, a "constituição da região político-administrativa de Lisboa". Boa sorte com isso, então.
Um primeiro tipo de críticas invocou "direitos". Quem mora fora de Lisboa - ou de uma qualquer área que dentro do concelho se defina como "centro" - tem tanto "direito à cidade" como os que lá moram. Há aqui três falácias. A primeira consiste em supor que a introdução de taxas para entrar em Lisboa de automóvel retira "direito à cidade", como se não houvesse outras formas de entrar e circular em Lisboa e como se o excesso de trânsito não fosse, ele próprio, atentatório do "direito à cidade". A segunda consiste em supor que a faculdade de circular de automóvel por onde muito bem se entenda é um "direito" ilimitado. O problema é que, mesmo que fosse um "direito", não há cidade nenhuma no mundo - à excepção talvez de Mogadíscio e outras cidades de países onde a existência de um estado é duvidosa - onde esse direito seja ilimitado. Território e estradas são bens comuns, cuja utilização o Estado e as autarquias têm a obrigação de regular. A terceira falácia consiste em supor que a introdução de uma taxa de congestão à entrada da cidade exclui a imposição de custos para a circulação dos residentes. Não exclui. Tecnicamente, a solução pode tornar-se mais complicada, mas pode ser simplificada se os residentes pagarem mais do que pagam hoje por lugares de estacionamento ao pé de sua casa ou, genericamente, num imposto municipal sobre veículos. Mas neste capítulo da "igualdade de direitos" - a terminologia é inadequada, mas enfim - entre residentes e não residentes, há também três coisas que importa ter em conta. Primeiro, a utilização do carro na cidade tem externalidades negativas que incidem desproporcionalmente sobre os residentes em comparação com os não residentes, pelo que o custo tem sempre de ser superior para os segundos. Segundo, este diferencial pode ser manipulado e, eventualmente, aumentado, se se quiser usá-lo para dar mais incentivos para a fixação no centro. Terceiro, e mais importante, toda esta discussão sobre "igualdade de direitos" ignora completamente os direitos daqueles que, fora ou dentro da cidade, não circulam de automóvel.
Isto leva-nos para o segundo tipo de críticas: as que invocam preocupações de equidade social. Afinal, portagens à entrada da cidade incidiriam sobre os "pobres" residentes nas áreas suburbanas, com o único efeito de melhorarem a qualidade de vida dos "ricos" residentes. Deixemos de lado a validade de uma análise que só vê "pobres" na linha do Estoril e "ricos" na Ajuda, Marvila ou S. Jorge de Arroios. Mais importante é notar o seguinte. Primeiro, os mais "pobres" não vêm de carro para Lisboa nem andam de carro em Lisboa. Vêm e circulam de transportes públicos, e têm depois, ainda por cima, de suportar os efeitos do uso do automóvel por outros, entre eles a drástica degradação da qualidade de serviço dos transportes públicos causada pelo excesso de tráfego de automóveis particulares. São eles os principais prejudicados pela actual situação. Para além disso, como recorda Nicolás Stier, professor na Columbia University, a propósito da possível introdução de um sistema semelhante em Manhattan, as - importantes - preocupações com a equidade do sistema podem ser concretizadas de diversas formas, tais como, por exemplo, usando as receitas para melhorar os transportes públicos nas áreas mal servidas ou tornando o montante pago em taxas de circulação parcialmente dedutível para famílias com mais baixos rendimentos. O ponto central sobre a questão da equidade é, afinal, o seguinte: como assinalam Jonas Eliasson e Lars-Göran Mattsson num estudo sobre a taxa de congestão de Estocolmo e, precisamente, os seus efeitos diferenciais sobre grupos sociais concretos, as consequências redistributivas de um sistema deste género dependem da forma como ele é desenhado e, crucialmente, da forma como as suas receitas são aplicadas. No caso de Estocolmo, os autores concluem que a taxa acabou por ter efeitos progressivos (e não regressivos) e os custos incidiram desproporcionalmente sobre os residentes do centro com mais elevados rendimentos. Dependendo do desenho do sistema, pode não ser assim, mas também não tem de ser o contrário.
O último tipo de críticas baseia-se na ideia de que um sistema que tome em conta todos estes aspectos é uma impossibilidade prática em relação à qual devemos ser profundamente cépticos. Os críticos não acreditam que as receitas de uma taxa de congestão viessem a ser de facto aplicadas na melhoria dos transportes públicos de acesso à cidade. "As portagens que já são pagas para entrar em Lisboa nunca, até hoje, foram utilizadas para reforçar o sistema público de transportes", informa-nos João Pinto e Castro no blogue Jugular. A consequência seria que os residentes dos subúrbios teriam mais dificuldades a chegar a Lisboa. Terrenos e casas em Lisboa ficariam mais caros, levando a que pessoas e empresas procurassem outros concelhos para se localizarem. Em alternativa, João Pinto e Castro propõe outra via, "a única que nos levará a algum sítio onde vale a pena ir: a constituição da região político-administrativa de Lisboa".
A resposta é típica daquilo a que, um dia, outro economista chamou a "retórica da reacção": um pessimismo supostamente "realista", que aponta efeitos nulos ou mesmo perversos a uma proposta de mudança, e que avança, em alternativa, um chavão genérico. Mas se é "pessimismo realista" que queremos, aí vai: enquanto não houver barreiras significativas à entrada de veículos em Lisboa, as câmaras dos concelhos limítrofes e o Governo podem ficar descansados. Podem continuar a acrescentar faixas de rodagem às estradas que acedem a Lisboa, sem que as pessoas que lá vivem sintam real necessidade de exigir mais e melhores transportes públicos, especialmente dos locais onde vivem para os terminais ferroviários e fluviais. Podem dar prioridade a mais umas rotundas com fontes no meio, em vez de construírem parques de estacionamento junto a esses terminais. Podem continuar a dizer que "não há meios". Que o "verdadeiro problema" é outro (é sempre outro). E podem fazer reuniões, seminários e debates sobre esse "verdadeiro problema". Por exemplo, a "constituição da região político-administrativa de Lisboa". Boa sorte com isso, então.
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