terça-feira, março 24, 2009

A Europa possível

Há cerca de um ano, as sondagens que antecediam o referendo irlandês do Tratado de Lisboa davam uma vantagem modesta ao Sim. Em Junho passado, foi o Não que acabou por prevalecer. Nos últimos meses, contudo, a vantagem do Sim num possível segundo referendo tem vindo a crescer continuamente, chegando hoje a quase 40 pontos. Não é preciso um génio para descobrir o que se passou. Como escrevia Pat Leahy, editor do Sunday Business Post, "a deterioração das finanças públicas criou receios de que a Irlanda terá de apelar à ajuda financeira da Europa, em vez de dizer à Europa que não meta o nariz nos nossos assuntos". Na verdade, é cada vez mais prevalecente a ideia de que a crise económica pode ajudar a resolver a crise política europeia e até originar um movimento decisivo na direcção de uma Europa política e socialmente integrada. Entre os partidos sociais-democratas, PS incluído, o lema para as próximas eleições parece encontrado: vamos lá outra vez ao "modelo social europeu". E os mais satisfeitos de todos com estes desenvolvimentos são os federalistas. Joan Marc Simon, secretário-geral da União dos Federalistas Europeus, escrevia há dias que a crise económica "é a janela de oportunidade que os federalistas esperavam há anos. É em tempos de crise que o valor acrescentado de uma Europa Unida é mais visível".

Bem, talvez. Mas quando revisitamos com atenção as tendências da opinião pública europeia nos últimos vinte anos, medidas através do Eurobarómetro, aquilo que encontramos sugere conclusões potencialmente diferentes. Independentemente de flutuações de curto prazo ditadas pelas condições económicas, ou de um declínio geral na percepção de benefícios trazidos pela integração - declínio esse que muitos julgam agora poder inverter - há várias coisas que, na prática, não mudaram um milímetro. Uma delas é o facto de diferentes países quererem diferentes "Europas". Questionados sobre em que áreas gostariam que as instituições europeias tivessem uma palavra na definição das políticas públicas, as opiniões públicas dos diferentes países reagem de forma bastante diferente. Em geral, os europeus no Leste e no Sul tendem a ver essa intervenção de forma muito mais favorável que os restantes. A explicação não demora muito a encontrar: mesmo quando tomamos em conta os diferentes níveis de desenvolvimento, é nos países onde a qualidade da governação doméstica é inferior - medida pelos índices de corrupção da Transparency International ou do Banco Mundial - que o apoio à transferência de soberania para a União Europeia é maior. Se não nos sabemos governar, que nos governe a "Europa", parece ser aquilo que italianos, gregos, búlgaros, eslovacos e, sim, portugueses parecem desejar. E as diferenças não ficam por aqui: é nos países mais desenvolvidos que os eleitores são mais resistentes à europeização de políticas com maiores implicações orçamentais. Quanto maior o PIB per capita real de um país, mais forte a oposição a um papel da UE nas políticas de saúde, educativas ou de segurança social. Pelo contrário, é nos países mais pobres que mais se aspira a que "a Europa" tome conta de tudo isto. O raciocínio é óbvio de mais para exigir explicação.

Não parece que a crise económica possa mudar tudo isto. Atirar o "modelo social europeu" para o centro das prioridades de actuação da UE ou do discurso de campanha para as eleições europeias pode ser um dispositivo retórico bem sonante neste momento, mas é provavelmente insensato. Antes de mais, é duvidoso que tal "modelo social europeu" exista ou possa existir num sentido forte do termo. O que há são modelos de estado-providência completamente distintos, que variam não apenas em termos dos recursos disponíveis para a redistribuição (maiores, obviamente, em países mais ricos), mas também, e mais importante, nas funções que desempenham e nas expectativas dos cidadãos sobre o papel do mercado, da família e do chamado "terceiro sector". Uma "política social europeia", por muito bem que soe neste momento, colidirá mais tarde ou mais cedo, como sempre sucedeu, com a indisponibilidade dos eleitorados dos países mais desenvolvidos da Europa para "harmonizar" políticas a este nível. Isto não significa que a UE, tal como previsto desde há muito pela estratégia de Lisboa, não possa desenvolver mecanismos através dos quais os estados-membros procuram chegar a acordo sobre alguns objectivos comuns ou discutir indicadores de desempenho. Ou mesmo fortalecer mecanismos que mitiguem as consequências negativas da abertura dos mercados, tais como os previstos nos fundos estruturais e de coesão. O resto, contudo, é uma ilusão. E uma ilusão perigosa. No Sul e no Leste, a frustração das expectativas de uma Europa social única será inevitável. E nos países mais ricos, é desta pulsão harmonizadora e homogeneizadora que se alimentam e continuarão a alimentar os antieuropeísmos mais primários e virulentos.

O que resta, então? Os líderes políticos europeístas farão melhor em olhar para aquilo que realmente quer a maior parte dos seus concidadãos na maioria dos estados-membros. E isso está há muito tempo identificado. Por um lado, mesmo em muitos países intrinsecamente eurocépticos, existem maiorias claras a favor de políticas comuns em áreas como a política externa, o ambiente, o crime organizado, o terrorismo, os fluxos migratórios, a defesa e, sim, a política monetária. Por outras palavras, em áreas onde os problemas que se levantam ultrapassam, pela sua natureza intrínseca, as fronteiras nacionais, onde as decisões tomadas num estado têm claras externalidades que afectam outros e onde a coordenação entre países pode obter economias de escala. Por outro lado, existem também maiorias claras na esmagadora maioria dos países a favor de um papel forte da UE na redução das desigualdades entre regiões europeias, da (re)integração profissional das mulheres e dos desempregados e nos apoios ao investimento gerador de emprego e às pequenas e médias empresas. Por outras palavras, as políticas europeias que podem mitigar as consequências mais negativas da abertura dos mercados. Não conheço dados sobre o assunto, mas não me surpreenderia que um apoio igualmente forte fosse suscitado, por exemplo, por um papel mais importante da UE na regulação dos sistemas bancários e dos mercados de capitais.E há muito ainda por fazer nestes domínios. Em vez de fingirmos que o "modelo social europeu" está aí ao virar da esquina, era sobre esta Europa possível, desejada e, provavelmente, desejável, que seria bom ouvir os candidatos às eleições ao Parlamento Europeu.

P.S.- A última frase tinha mais intuitos retóricos do que outra coisa, mas há quem tenha decidido levá-la mesmo a sério. E por isso, obrigado.

terça-feira, março 10, 2009

Sobre a "personalização" da política

A propósito do congresso do PS tem-se falado bastante de "personalização" da política e das suas inúmeras perversidades. O mantra que se segue habitualmente é o seguinte. Hoje, já não se discutem ideias na política. Os eleitores, em vez de escolherem entre partidos e programas alternativos, escolhem "personalidades". Estas são-nos "vendidas" como um produto, por técnicos de marketing que recorrem a sondagens para determinar o que os candidatos devem dizer e como o devem dizer. Daqui decorrem também alguns chavões: o primado das pessoas sobre as ideias, da forma sobre o conteúdo, do meio sobre a mensagem, etc., etc., etc. Como Marina Costa Lobo já notou num artigo recente no Jornal de Negócios, e ao contrário do que possa parecer aos mais distraídos, a "personalização" da política em Portugal não começou na semana passada nem foi inventada pelo PS. Mas gostaria de ir um pouco mais longe na crítica a este tipo de ideias feitas.

É realmente difícil contestar a noção de que, nas democracias contemporâneas, os eleitores se encontram cada vez mais "desalinhados". Isto significa que a sua pertença a um determinado grupo social é cada vez menos capaz de nos ajudar a prever em quem votarão (em Portugal nunca ajudou muito) e que há cada vez menos eleitores que incluem a sua proximidade psicológica a um determinado partido como elemento relevante da sua identidade política e social. Naturalmente, isto abre espaço a que o voto seja muito ditado por factores menos estáveis, tais como, por exemplo, a opinião que os eleitores formam sobre as características e atributos de um candidato, e é isso mesmo que a investigação sobre o tema nas democracias ocidentais tem demonstrado.

Contudo, isto não equivale a dizer que o centramento das campanhas e das escolhas em torno dos candidatos impede a discussão de ideias, a avaliação de realidades substantivas ou a racionalidade política. Os críticos da "personalização" da política falam disto como se as eleições se tivessem transformado num mero concurso de beleza ou, em alternativa, como se estivéssemos a regressar à Alemanha de Goebbels. Como se as opiniões que os eleitores têm dos líderes partidários fossem completamente independentes das suas propostas, da clareza e competência com que as transmitem (um bom indicador da sua qualidade como governantes ou potenciais governantes), das promessas que fazem e cumprem (ou não), do desempenho do governo ou dos partidos que lideram ou da situação social e económica. Mas não são, como qualquer análise da relação entre os dados da economia e a popularidade do primeiro-ministro rapidamente revela. O facto de todos estes factores relevantes à luz de qualquer teoria da democracia serem agora mais corporizados em pessoas concretas não os torna menos importantes e consequentes. De resto, como assinala o politólogo Ian McAllister num ensaio sobre o tema no Oxford Handbook of Political Behavior, essa corporização vem ao encontro daquilo que é uma aspiração legítima dos eleitores e um aspecto fundamental do bom funcionamento da democracia: a possibilidade de identificar claramente um responsável e de o recompensar ou punir pelo seu desempenho.

Mas imaginemos, por momentos, que os atributos dos líderes que realmente contam para os eleitores seriam "não-políticos", tais como aspectos da sua história de vida ou aparentes traços de personalidade. Deveríamos ficar assim tão preocupados? Não necessariamente. Vários estudos sintetizados num artigo de 2004 de Gian Vittorio Caprara e Philip Zimbardo na American Psychologist mostram que os eleitores formam de facto percepções sobre os traços de personalidade dos candidatos, organizando-as em torno de algumas dimensões principais: se os vêem como vigorosos e assertivos; empáticos e amigáveis; conscenciosos e auto-contidos; ou abertos a novas ideias, pessoas e experiências. Sem surpresa, os eleitores tendem a preferir os candidatos cujos traços de personalidade apercebidos se aproximam mais das suas próprias características. Mas mais interessante ainda, a ênfase num ou noutro traço de personalidade reflecte os diferentes valores e posições ideológicas quer dos eleitores quer dos candidatos. À direita, prevalecem a energia e a auto-contenção, mais próximos dos valores da responsabilidade individual, da autoridade e do conservadorismo. À esquerda, prevalecem a empatia, a abertura e o universalismo, mais próximos dos valores da igualdade, da justiça social e do cosmopolitismo. Em face de escolhas muito complexas e submersos em informação política, os eleitores podem recorrer a pistas tão simples como estas e, mesmo assim, "acertar". Em 2005, em Portugal, os eleitores de direita abandonaram um candidato visto como empático, mas inconstante e diletante. Hoje, os eleitores de esquerda afastam-se de um candidato visto como crispado e autoritário. Terão errado ou estarão a errar no fundamental?

Há ainda outras fraquezas nas críticas habituais à "personalização" da política. Elas ignoram, por exemplo, que a atenção obsessiva dos eleitores e da comunicação social aos movimentos e às declarações dos políticos pode, em sistemas onde o mérito realmente conte numa carreira política (não digo que seja o nosso), constituir uma provação à qual só podem sobreviver pessoas com qualidades verdadeiramente invulgares. Os exemplos do (relativo) sucesso de pessoas como John McCain e Hillary Clinton, do (total) sucesso de alguém como Barack Obama e do fracasso de Sarah Palin nas últimas eleições americanas servem para mostrar que nem tudo tem de ser mau na "personalização" e "mediatização" da política. Mais importante ainda, os críticos presumem a existência de um passado onde a generalidade da população discutia todos os dias "grandes ideias" sobre a política. É duvidoso que, mesmo nas democracias mais antigas, esse passado mítico tenha alguma vez existido para além da esfera das elites. A moderna e verdadeira democracia de massas é um regime em que não basta que igrejas, sindicatos e caciques locais se limitem, como dantes, a arregimentar eleitores. É cada vez mais um regime no qual cada eleitor é um indivíduo que tem de ser persuadido. A "personalização" e a "mediatização" da política, o marketing político, as agências de comunicação e a omnipresença das sondagens são filhas desse regime. Nem tudo é bom. Mas quem quiser voltar para trás não me leva consigo.

Dito isto, o "Movimento Sócrates 2009" é uma boa ideia? Não, é péssima. Em 2005, Sócrates era, para muita gente, parte da solução. Hoje, no actual contexto, é parte do problema. Não há nem haverá "movimento" de espécie alguma, e a aproximação a uma linguagem de esquerda é, digamos assim, canhestra. Mas a culpa não é da "personalização" da política ou do marketing político. É só do mau marketing.