terça-feira, setembro 23, 2008

Remodelações e popularidade

Um dos desportos favoritos do jornalismo político consiste em tentar antecipar, explicar ou apreciar as consequências de remodelações governamentais. O caso mais recente em Portugal é o de Rui Pereira, cujo lugar vai sendo visto como estando em perigo na sequência da vaga de notícias sobre assaltos e insegurança e do puxão de orelhas recebido de Belém. Mas ao longo de um mandato típico, em reacção a escândalos, declarações desajeitadas, medidas contestadas ou maus indicadores de desempenho, há sempre inúmeras especulações sobre quem vai ser despedido de um governo e quando isso irá suceder.

A abordagem típica do problema olha para o primeiro-ministro como uma espécie de termóstato da popularidade governamental: quando a popularidade de um ministro desce, colocando em risco a imagem pública do governo, o ministro é demitido de forma a reequilibrar essa popularidade. Inclusivamente, defende-se muitas vezes - provavelmente com alguma razão - que estas remodelações são geridas ao longo do ciclo eleitoral. Concentrando as medidas políticas mais controversas numa primeira fase do mandato, o líder do partido de governo teria incentivos para despedir o ministro responsável num momento mais tardio do mandato, transferindo as culpas por essas medidas de forma a preparar a reeleição. A teoria da remodelação como resultado e correctivo da impopularidade foi, de resto, fleumaticamente defendida por umas das vítimas mais recentes do processo, o ex-ministro Correia de Campos, que numa recente entrevista ao PÚBLICO explicava a sua demissão na base das suas "baixíssimas quotas de popularidade", "falta de sintonia com a população" e "exaustão política nos media e na opinião publicada".

Contudo, como se explica, assim, por exemplo, a permanência no governo de ministros que são ou foram extremamente impopulares neste governo ou nos anteriores, tais como Maria de Lurdes Rodrigues ou Manuela Ferreira Leite, Manuel Pinho ou Bagão Félix, para dar apenas alguns exemplos? O primeiro aspecto a tomar em conta são as consequências ambíguas que as remodelações governamentais têm na popularidade dos governos. Um artigo de 2005 sobre o tema no American Journal of Political Science mostra que, no Reino Unido, as demissões de ministros altamente contestados na imprensa e pela oposição tendem de facto a produzir efeitos benéficos na popularidade do governo. Mas esse efeito nem sempre é garantido. Quando as demissões ocorrem como aparente consequência não tanto da impopularidade de um ministro mas sim de discordâncias no seio do governo sobre políticas concretas, o efeito é o inverso. Por outras palavras, as remodelações podem, em si mesmas, ser causadoras de impopularidade, sinalizando a existência de fraquezas e crises no interior do governo, conflitos intrapartidários ou da própria incompetência do primeiro-ministro e líder do governo para gerir a sua equipa.

Em segundo lugar, por muito que pareça que os líderes partidários estão obcecados com sondagens e com opinião publicada, a concepção do seu papel a este nível como meros termóstatos da popularidade governamental é, certamente, redutora. Há várias coisas que um primeiro-ministro necessita dos membros da equipa governamental. É bom que sejam populares e assim fortaleçam a posição do governo, mas é perigoso que sejam demasiado populares, não se vão eles tornar rivais do líder do partido e, logo, figuras com incentivos para a deslealdade (Gordon Brown bem o pode dizer, a propósito de David Milliband). É também bom que tenham competência técnica e dominem os assuntos ligados à pasta, mas é perigoso que tenham demasiado controlo sobre assuntos complexos que o primeiro-ministro não domine, adquirindo assim excessiva autonomia e podendo não subordinar a sua acção às prioridades políticas gerais do governo. É bom que tenham experiência e estabeleçam boas relações com as direcções gerais e funcionários públicos que vão controlar, e a substituição frequente dos detentores de uma pasta não ajuda certamente a esse fim. Mas é perigoso que se aproximem demasiado dos interesses do aparelho de Estado que são supostos controlar ou dos interesses envolvidos que são supostos conciliar, não vão tornar-se aliados de um ou outro contra os interesses do partido e do governo.

É talvez por tudo isto que os - escassos - estudos existentes sobre os factores que explicam as remodelações governamentais acabem por concluir que a (im)popularidade dos governos e dos ministros não é necessariamente a única ou até a melhor explicação para a frequência com que as remodelações têm lugar. Em dois artigos recentes, os politólogos Indridi Indridason e Christopher Kam mostram que há dois principais factores, para além da impopularidade, que ajudam a explicar a frequência com que ocorrem remodelações. Por um lado, elas são mais frequentes nos sistemas políticos onde o primeiro-ministro tem uma posição institucional mais débil no interior do governo e em relação ao partido. Essa debilidade ajuda a explicar quer uma probabilidade maior de que se faça uma "má escolha" inicial quer a necessidade de emendar a mão a meio-caminho da forma mais radical possível, demitindo o ministro. Por outro lado, as remodelações não parecem ocorrer de forma aleatória em todas as pastas. Pelo contrário, elas têm lugar com muito maior frequência em pastas onde a complexidade quer organizacional quer das políticas em causa é maior, ou seja, mais uma vez, onde o primeiro-ministro tende a fazer escolhas iniciais menos informadas e onde tem maior dificuldade para controlar a acção dos ministros e limitar a sua autonomia. Um governo que não remodela quando as opiniões pública e publicada o pedem está a limitar a sua capacidade para recuperar popularidade. Mas por outro lado, está a evitar enviar sinais de crise interna que poderiam eles próprios fazer perder capital político e a revelar, mesmo que involuntariamente, que a equipa ministerial se encontra plenamente subordinada à liderança do partido e aos objectivos do primeiro-ministro. Às vezes, compensa ser teimoso.

terça-feira, setembro 09, 2008

Malditas estatísticas

Como assinala o criminólogo Vincent Sacco no seu livro When Crime Waves (2005, Sage Publications), o crime é um dos poucos fenómenos sociais que são discutidos em termos de "ondas". Uma pesquisa no Google News à expressão "onda de" confirma-o plenamente. Para além das ondas "de assaltos", "de violência", "de homicídios", "de furtos" e "de insegurança", só se encontram ondas "de protestos" e "de incêndios". Aqui está, de resto, uma boa maneira de prever a ocorrência de uma onda de criminalidade como aquela em que, alegadamente, Portugal está mergulhado nos últimos tempos. É mais provável que ocorra quando os sindicatos estão de férias, ou seja, quando as águas do protesto estão em repouso à espera da chamada rentrée política. E se a área florestal ardida até Agosto estiver abaixo da média da última década, como sucedeu este ano, estão reunidas as condições ideais para que um tsunami de assaltos, roubos e homicídios inunde o país.

Exagero? Não creio. Os crimes são uma matéria-prima fácil, barata e rentável para a comunicação social. Ocorrem todos os dias (assegurando um fluxo constante de notícias), a informação é fornecida por fontes oficiais que não carecem de verificação (a polícia), têm culpados e inocentes (dramatismo assegurado) e baixa complexidade factual (facilitando o trabalho quer dos jornalistas quer da audiência). Na ausência de outras notícias relevantes durante um período prolongado, as "ondas" facilmente ganham dimensão. Não surpreende, por isso, que uma das coisas que se sabem da investigação sobre a matéria é que a relação entre a real ocorrência de crimes e a sua cobertura pelos meios de comunicação social é, na melhor das hipóteses, ténue. E uma das direcções mais promissoras deste tipo de estudos consiste precisamente em mostrar que a ordem causal pode ser exactamente contrária à que imaginaríamos à partida. Independentemente de reflectirem ou não reais aumentos na criminalidade, as "ondas" podem amplificar a percepção social de que a actividade criminosa está a aumentar, de que é bem sucedida e de que a polícia não a consegue travar. Podem contribuir assim, precisamente, para estimular as decisões individuais de cometer um crime, ao colocarem em causa o efeito dissuasor da lei penal e das forças de segurança.

Significa isto que a criminalidade não é um problema grave em Portugal, ou que estamos proibidos de a discutir? De forma alguma. Mas seria interessante que, pelo meio do arrazoado dos últimos tempos, os "criminólogos" de serviço e os responsáveis políticos e institucionais tivessem assinalado dois factos. O primeiro é que, na base da informação disponível, ninguém faz a mais pequena ideia se a criminalidade grave e violenta aumentou ou diminuiu em Portugal nos anos mais recentes. Quando se comparam dados sobre a frequência de crimes graves e violentos participados às forças policiais (a base das estatísticas oficiais) com dados sobre a vitimação pelos mesmos crimes, medida na base de inquéritos realizados a amostras representativas da população, duas discrepâncias óbvias emergem. Primeiro, há naturalmente menos crimes participados do que aqueles de que as pessoas dizem ter sido realmente vítimas. Segundo, as tendências de evolução de uns e outros são completamente discrepantes. De 1999 para 2004, segundo os relatórios de segurança interna, as ocorrências de crimes graves e violentos participados à polícia aumentaram em quase 30 por cento. Mas as taxas de prevalência desses crimes, medidas através do International Crime Victims Survey das Nações Unidas, permaneceram estáveis de um ano para o outro. Por outras palavras, o que se passou terá sido, ao mesmo tempo, mais e menos grave do que julgamos. Mais grave porque os números oficiais subestimaram a criminalidade real. Menos grave porque o verdadeiro aumento foi na participação dos crimes. A criminalidade real aumentou em 2008? Em rigor, ninguém sabe.

Os "criminólogos" de serviço poderiam também ter mencionado que ninguém sabe se a mudança das leis penais, no número de efectivos policiais, nas taxas de encarceração ou noutra qualquer medida de política criminal produziu este ou aquele efeito na criminalidade em Portugal. Ninguém sabe porque não existe - que eu conheça - qualquer estudo sobre a matéria no nosso país que, com um mínimo de sofisticação metodológica, tenha apurado o efeito desses factores na criminalidade participada ou na vitimação. Fazê-lo é um pouco mais complicado do que olhar para um gráfico e comparar o que aconteceu antes e depois de qualquer coisa. Por um lado, porque a criminalidade é afectada por muitos factores - a situação económica e as desigualdades nos rendimentos, em especial - que não são constantes ao longo do tempo, sendo que as mudanças detectadas podem dever-se a eles e não a outras alegadas causas. Segundo, porque as medidas de política criminal são elas próprias reacções a mudanças na criminalidade, o que dificulta sobremaneira o apuramento dos reais efeitos dessas medidas. Mas juristas, políticos, polícias e "criminólogos" defenderam e atacaram, nas últimas semanas, as mais variadas medidas do passado como se tivessem em seu poder informação rigorosa sobre quais foram as suas consequências. Não têm.

Como em muitos outros domínios, a discussão sobre a política criminal em Portugal encontra-se numa era pré-moderna e pré-científica, carente de dados e análises objectivas sobre o impacto das políticas públicas. A realização de um Inquérito Nacional à Vitimação patrocinado pelo MAI, cujos resultados deverão ser conhecidos em Janeiro, é um primeiríssimo passo na direcção certa. Mas à luz de exemplos recentes, é impossível não ficar algo preocupado. Em Março passado, o Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT) promoveu um inquérito de opinião que mostrava que mais de metade dos portugueses confia nas forças de segurança e que mais de 70 por cento se sentiam seguros. Contudo, em reacção aos resultados, o presidente do OSCOT, Garcia Leandro, acha que "somos um povo excessivamente optimista". E acha também "que a criminalidade organizada vai aumentar" e que os factos recentes lhe têm dado "alguma razão, mesmo que isto ainda não tenha um significado directo nas estatísticas". Ora bolas. Malditas estatísticas.