terça-feira, março 18, 2008

O drama da maioria absoluta

Agora que o Governo fez três anos, e a cerca de ano e meio das próximas eleições legislativas, um dos desportos preferidos de comentadores, políticos e jornalistas é o de especular sobre a possibilidade de o PS repetir a maioria absoluta que conquistou em 2005. O que há de interessante nesta pergunta não é tanto a resposta que lhe possamos dar mas sim a pergunta em si mesma. Ela denuncia duas coisas. A primeira é a descrença geral, apesar dos protestos e da impopularidade do governo, na possibilidade de vitória de outro partido que não o PS. A segunda é a importância crucial atribuída às maiorias absolutas no nosso país. Poucos dias depois das eleições em Espanha - onde a questão de saber se o PSOE poderia ou não ter maioria absoluta ocupou pouco espaço no debate político - por que parece ser tão importante para tanta gente, em Portugal, a questão da maioria absoluta? Por que tanto parece depender disso?

Se olharmos para a questão do ponto de vista das consequências económicas de diferentes formatos de governo, não é fácil perceber onde está o drama. Comecemos por pegar em dois indicadores de desempenho económico, o crescimento do PIB e a taxa de desemprego. Se olharmos para o período entre 1982 - momento a partir do qual a democracia portuguesa se pode dizer perfeitamente consolidada \u2212 e 2007, uma simples comparação entre o desempenho de governos maioritários monopartidários e outras soluções de governo não dá muitas pistas sobre a desejabilidade de uma ou outra solução. Em média anual, a taxa de desemprego foi igual (6 por cento) em períodos de governos maioritários e minoritários, e o crescimento económico sob governos minoritários (4 por cento) foi inclusivamente superior ao verificado, em média, sob governos maioritários (3 por cento). Nos (breves) governos de coligação, a situação foi de facto pior a ambos os níveis, mas pelo menos num deles (1983-1985) é mais fácil defender a ideia de que foram as circunstâncias económicas que causaram a coligação do que o inverso.

É certo que as comparações anteriores são muito simplistas, e não dão conta da miríade de factores que pode ter influenciado o desempenho económico para além do mero formato do governo. Mas se quisermos ir mais longe, podemos recorrer ao livro de Torsten Persson e Guido Tabellini, The Economic Effects of Constitutions .(2003, MIT Press). Numa sofisticada análise de 50 regimes democráticos durante os anos 90, Persson e Tabellini não detectam qualquer relação entre sistemas eleitorais proporcionais e maioritários (estes últimos invariavelmente resultando em maiorias absolutas monopartidárias) e vários indicadores de desempenho económico ou de políticas promotoras de crescimento ou de produtividade, assim que controlamos o efeito de factores de natureza não política. Isto não significa que não haja diferenças. Mas são diferenças que, em vez de sugerirem a superioridade deste ou daquele tipo de instituições políticas ou soluções de governo, sugerem sim a existência de um "trade-off" entre elas. Sistemas que produzem sistematicamente governos maioritários monopartidários tendem a produzir menores défices orçamentais e a responder de forma mais rápida e adequada a ciclos económicos negativos. Não é evidente, contudo, que num contexto europeu de grandes constrangimentos às políticas orçamentais, esta diferença ainda seja muito relevante, pelo menos no que ao défice diz respeito. Por outro lado, sistemas onde prevalecem governos minoritários ou de coligação tendem a ter políticas sociais mais generosas, que tomam em conta interesses sociais mais amplos e que podem até ser mais eficazes, a julgar por indicadores de desenvolvimento social exibidos por esses países. De resto, não surpreende que assim seja: políticas adoptadas por mecanismos mais consensuais podem representar melhor e ser melhor aceites por uma parte maior da população, gerar menos contestação social e ser aplicadas com menores resistências quer dos interesses sociais organizados quer do aparelho do estado indispensáveis para a sua implementação bem sucedida.

Se é assim, onde está, então o grande drama da eventualidade de, em 2009, assistirmos à impossibilidade de um governo de maioria absoluta? Será o espectro da governação Guterres? Mas Sócrates não é, decididamente, Guterres, nem os anos que se avizinham serão iguais à (ilusoriamente tranquila) segunda metade dos anos 90. Será o espectro do fracasso da experiência de coligação PSD/CDS-PP? Mas do ponto de vista estritamente político o que correu mal nessa coligação não foi tanto a coligação em si - de resto, muito mais solidária e estável do que se imaginaria à partida - mas sim as peripécias ligadas à sua liderança. Deveremos temer a irresponsabilidade dos eleitores, que exigirão de um governo sem maioria intermináveis benesses para compensar os últimos anos? Mas recorde-se foi esse mesmo eleitorado que, em 2004, depois das promessas de subidas de pensões e as reduções de impostos propostas por Santana Lopes para o orçamento do ano seguinte, aplaudiu estrondosamente o seu despedimento sumário às mãos de Jorge Sampaio. E se depois desta governação os eleitores e os interesses sociais exigirem políticas mais consensuais, fruto de maior e melhor diálogo e que canalizem os recursos disponíveis para melhorar a qualidade e equidade das políticas sociais, estarão realmente a pedir algo de irrazoável?

Independentemente daquilo que cada um de nós deseje para cada um dos principais partidos em 2009, o cenário de uma vitória do PS sem maioria absoluta é, de longe, o que parece mais plausível. Isto exige que os partidos de esquerda e centro-esquerda em Portugal pensem desde já nas suas responsabilidades. Uns têm de começar a abandonar os seus complexos em relação ao poder, assim como a pensar duas vezes antes de cavalgarem os protestos na rua como se toda a "boa política" só se pudesse fazer aí. Outros têm de começar a ponderar as consequências da demonização de adversários e de soluções de governo com os quais, quase inevitavelmente, vão ter de conviver. As soluções de compromisso que possam emergir das eleições de 2009 parecerão certamente atraentes a uns e repugnantes a outros. Mas para o bem e para o mal, são aquelas que o sistema consente para se obtenha alguma estabilidade governativa. O vazio, o impasse e a instabilidade seriam, isso sim, o verdadeiro drama.

terça-feira, março 04, 2008

Longe do consenso

A democracia espanhola sempre foi interessante para os estudiosos dos fenómenos políticos. O principal objecto desse fascínio é, de resto, o próprio processo através do qual Espanha se tornou um regime democrático. À partida, pareceria que poucos países poderiam apresentar condições tão desfavoráveis para uma transição pacífica, com elites políticas que se encontravam profunda e historicamente divididas em redor de temas tão centrais como o modelo económico e social, as relações entre o Estado e a Igreja, a inserção geoestratégica do país, a forma de estado ou a forma de governo. Mas, na verdade, as "duas Espanhas travadas em luta incessante", como escreveu Ortega y Gasset, acabaram surpreendentemente por encontrar a paz num processo mil vezes estudado de negociação e conciliação de interesses, à sombra da memória recente de uma das guerras mais selváticas da história da civilização ocidental. E este enorme milagre foi seguido, nas décadas seguintes, de outros mais pequenos mas também significativos: a transformação do PSOE de um partido marxista num partido de centro-esquerda moderado e pragmático; a participação de partidos nacionalistas bascos e catalães em coligações ou entendimentos políticos estáveis e eficazes no Governo central; a aparente deslocação do PP para o centro do espectro político e a conversão definitiva da direita espanhola à democracia; e a transformação de Espanha numa sociedade moderna, com altos níveis de desenvolvimento económico e social, hoje a nona economia mundial e com um PIB per capita superior ao de Itália.

Por estes dias, contudo, Espanha desperta o interesse dos especialistas por razões bastante distintas. Uma das coisas que durante algum tempo se julgou saber sobre o comportamento eleitoral é que a modernização tenderia a enfraquecer a ancoragem social do eleitorado. A mobilidade social, a complexificação da estrutura de classes, o declínio dos sindicatos e a secularização seriam processos através dos quais os eleitores se tornariam cada vez mais independentes em relação a grupos e identidades sociais. Os partidos poderiam contar cada vez menos com bases sociais estáveis. No máximo, poderiam contar apenas com bases formadas por indivíduos com atitudes e valores semelhantes, mas sem laços sociais claros entre si e, de resto, com opiniões heterogéneas sobre a multiplicidade de temas em jogo numa eleição. E, neste cenário, as escolhas eleitorais reorientar-se-iam cada vez mais para critérios de desempenho e eficiência.

Mas, nos últimos anos, Espanha vem fornecendo uma excelente ilustração de como essas alegadas tendências são tudo menos inexoráveis. Como mostram Mariano Torcal e Lucia Medina num capítulo de um livro altamente recomendável por estes dias (Elecciones Generales 2004, editado em Dezembro passado pelo Centro de Investigaciones Sociológicas), a classe social a que os eleitores pertencem vem crescendo de importância na explicação do comportamento de voto dos espanhóis, sendo igualmente visível, desde 2000, um aumento de importância da religiosidade como factor explicativo do voto. Um dos reflexos desta crescente ancoragem social do voto é visível quer nos últimos resultados eleitorais, quer nas sondagens para as eleições de 9 de Março próximo: apesar do óptimo desempenho da economia espanhola em ambos os períodos (pela qual o partido de Governo deveria supostamente ser altamente beneficiado) ou da actual enorme vantagem de Zapatero em relação à Rajoy no que respeita à simpatia que evocam nos eleitores, os votantes espanhóis em 2004 e 2008 parecem divididos em dois grandes blocos quase completamente estanques. Nas sondagens, cujos resultados parecem decalcados dos das últimas eleições, a vantagem do PSOE anda pelos três ou quatro pontos percentuais, e torna-se ínfima quando se trata de projectar a distribuição de assentos parlamentares.

A criação desta profunda clivagem que hoje parece atravessar Espanha remonta a 2000 e à vitória do PP por maioria absoluta nas eleições desse ano. Como explica Julián Santamaría no já mencionado livro, essa estrondosa vitória dos populares resultou não apenas do excepcional desempenho económico de Espanha nos anos anteriores mas também da surpreendente disponibilidade do Governo para fazer pactos com os sindicatos ou os nacionalistas bascos e catalães em áreas políticas fundamentais, assim como da sua moderação ideológica e aceitação das regras do jogo da democracia espanhola. Contudo, o PP decidiu interpretar a vitória de 2000 de outra forma, como sintoma de um realinhamento eleitoral dos espanhóis à direita. O que se viu de seguida foi que a sua moderação, afinal, tinha sido meramente táctica, fruto da circunstância de não dispor de uma maioria absoluta. Entre 2000 e 2004, assistiu-se a um mandato de confrontação total com os sindicatos, com os nacionalismos, com a oposição parlamentar e, no tema do Iraque, com toda a sociedade espanhola. Recuou-se ao passado no delicadíssimo tema da separação entre o Estado e a Igreja, reabrindo uma das feridas mais difíceis de sarar na sociedade espanhola. E como a derrota do PP em 2004 não foi digerida pelo partido como legítima ou até legal, não se tirou dela quaisquer ilações que não fossem a de um reforço da estratégia de confrontação. Nem o PSOE, desde então, tem abdicado de alimentar estas clivagens quando pressente que, mesmo que dividindo a Espanha em duas, pode ficar com a maior parte.

O consenso não é em si mesmo uma virtude, algo que os abundantes (e em grande medida falsos) consensos na política portuguesa e a inacção que deles resultam demonstram amplamente. Mas a ausência de quaisquer bases para um consenso entre os dois maiores partidos espanhóis em temas tão centrais como a defesa e a política externa, a luta contra o terrorismo, os poderes e as competências das comunidades autónomas ou a justiça só pode ser vista como perturbante. É também verdade que o passado mostra como nada a este nível é definitivo, e que as clivagens políticas, mesmo as mais profundas, podem ser activadas mas também desactivadas pelos actores políticos. Contudo, as sondagens não prenunciam nada nesse sentido. A vitória do PSOE - o cenário mais provável neste momento - será sempre por pouco, podendo ser assim insuficiente para deslegitimar os actuais quadros dirigentes do PP e dificultando o caminho para moderados como Ruiz-Gallardón. E uma vitória do PP - um cenário possível, mesmo que o PSOE tenha mais votos, fruto dos particulares enviesamentos do sistema eleitoral espanhol - seria para os populares a prova definitiva de que o confronto e a polarização compensam. Espanha está longe do regresso ao consenso.