terça-feira, janeiro 30, 2007

Um presente avariado

No artigo anterior, publicado há quinze dias atrás, abordei uma das disfunções existentes na forma como o referendo está regulado em Portugal: o requisito de um quórum mínimo de 50% dos eleitores para que o resultado seja vinculativo. Esta regra contribui para a abstenção de uma forma indirecta, ao alterar os incentivos dos agentes políticos e sociais com capacidade para mobilizar os eleitores para o voto. Por um lado, a possibilidade da "não vinculatividade" concede aos defensores do statu quo uma forma adicional de obterem o que desejam através da desmobilização dos eleitores, estratégia que, aliás, vem sendo abundantemente usada no caso italiano. Por outro lado, ela faz com que os partidos possam recalcular os custos e os benefícios políticos que lhes podem advir do resultado de um referendo: sempre que uma tomada de uma posição clara sobre um determinado tema comporte riscos de divisões no interior de um partido ou no eleitorado, o preço a pagar por uma estratégia de passividade e ambiguidade pode acabar por não ser - como seria normal - a derrota pura e simples, mas sim um resultado ainda potencialmente aceitável, o da "não vinculatividade".

Esta não é, contudo, a única disfunção existente na forma como o referendo se encontra regulado em Portugal. Entre os muitos critérios que se podem usar para distinguir os diferentes tipos de referendo entre si, um dos mais importantes é o de saber se um referendo pode ocorrer independentemente da vontade de uma maioria parlamentar. Em Portugal, a resposta é simples: a probabilidade de isso suceder é baixíssima. E vale a pena atentarmos no detalhe carinhoso com que os partidos políticos portugueses, ao mesmo tempo que introduziam, em 1997, a possibilidade formal de iniciativas populares de referendo, se dedicaram igualmente a garantir que elas só vingariam como resultado de uma extraordinária e altamente improvável confluência de vontades.

Em primeiro lugar, impuseram para essas iniciativas a recolha de nada menos que 75.000 assinaturas, dez vezes mais, note-se, do que aquilo que é necessário para constituir um partido. Em segundo lugar, excluíram do leque de matérias referendáveis não apenas as matérias constitucionais e orçamentais, mas também quase tudo o que faz parte da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República. E, finalmente, fizeram com que a chegada da proposta de referendo ao Tribunal Constitucional e ao Presidente da República dependesse da sua aprovação por uma maioria parlamentar. É verdade que, para a revisão de 1997, o Partido Socialista - talvez persuadido que a Presidência da República dificilmente escaparia a um candidato por si apoiado - propôs que as iniciativas populares pudessem chegar directamente ao Presidente. Seria interessante saber se o PS defenderia hoje algo semelhante, ou se o PSD reagiria à ideia com o mesmo horror que exprimiu na altura. O que ficou da revisão, contudo, é um conjunto de barreiras possivelmente justificáveis quando tomadas individualmente, mas que em conjunto significam que, a não ser que haja uma pressão da opinião pública suficientemente forte para vergar uma maioria parlamentar, essa maioria nunca terá de assistir a um referendo contra a sua vontade, e muito menos um referendo que tenha origem numa iniciativa popular.

Este fenómeno tem possíveis consequências sobre as quais deveríamos meditar. Os referendos que decorrem da vontade das maiorias servirão sempre um de dois objectivos: ou o de serem meros plebiscitos, através dos quais os governos se limitam a confirmar e demonstrar o apoio popular previsível a uma sua medida política; ou o de serem meros meios de desresponsabilização política, através dos quais se transfere para os eleitores a decisão sobre temas sensíveis que geram divisões no interior dos partidos. O primeiro problema é que nem uns nem outros tenderão a gerar forte participação eleitoral, uns porque o resultado é conhecido à partida, e outros porque esse resultado nunca foi, desde o início, o mais importante. É isto, por exemplo, que já se sabe da longa experiência nos Estados Unidos com referendos a nível estadual, onde, como demonstram Shaun Bowler e Todd Donovan no seu Demanding Choices (University of Michigan Press, 1998), são os referendos que resultam das iniciativas dos cidadãos e não os que emanam das legislaturas estaduais os que contam com maiores taxas de participação.

O segundo problema é que isto significa também que o referendo em Portugal não serve a única função política que seria útil num sistema onde os governos controlam partidos coesos, têm enormes poderes legislativos próprios e enfrentam parlamentos dóceis: a de constituírem um ponto de veto em relação à vontade dos governos e de os estimularem - por receio de referendos que escapem ao seu controlo - a alinhar as suas políticas com as preferências da maioria dos cidadãos. É talvez por isso que, como vem demonstrando o politólogo Simon Hug numa série de trabalhos publicados nos últimos anos, é nos estados norte-americanos onde a iniciativa popular dos referendos se encontra mais constrangida que as políticas públicas mais se afastam das preferências da opinião pública, e é nos países do Leste Europeu onde o mesmo sucede que os níveis de satisfação dos eleitores com a democracia são mais baixos.

Não é de todo garantido que as virtudes da democracia directa sejam maiores e mais importantes do que as suas vantagens. Mas das duas uma: ou nos deixam experimentá-la realmente, ou mais valeria pedirmos aos nossos parlamentares que levassem de volta a versão postiça, desconfiada e disfuncional que, embrulhada em papel vistoso, nos foi oferecida em 1997.

segunda-feira, janeiro 15, 2007

Disfunções do referendo em Portugal

Independentemente daqueles que venham a ser os resultados do referendo sobre a despenalização do aborto, há aspectos da regulação do referendo no nosso ordenamento constitucional que merecem discussão séria. Infelizmente, a partir das oito da noite do dia 11 de Fevereiro, já será tarde: tudo o que haja para dizer será interpretado à luz dos próprios resultados ou contaminado por eles. Logo, é melhor abordar o assunto enquanto tudo é ainda incerto. Neste e no próximo artigos, concentro-me exclusivamente nas duas principais disfunções do actual regime do referendo: a exigência de uma participação eleitoral de mais de metade dos eleitores para que um referendo tenha efeito vinculativo; e a necessidade de aprovação parlamentar da iniciativa popular do referendo.

A exigência de um quórum mínimo para que o resultado de um referendo seja vinculativo, prevista no artigo 115.º da Constituição, não é um exclusivo português, sendo partilhado por países como Itália ou Malta, parte das novas democracias da Europa de Leste, ou até a Dinamarca. Nos debates parlamentares em torno da revisão constitucional de 1997, quer o PS quer o PSD, responsáveis pela imposição desta regra, recorreram frequentemente à ideia de que só com uma participação acima de um determinado patamar se garantiria a "legitimidade" dos resultados. O argumento merece ser examinado à luz quer da experiência histórica, quer da lógica e teoria políticas.

O primeiro obstáculo à existência de uma regra desta natureza é colocado pela abstenção técnica. Nos debates da revisão de 1997, o assunto foi abordado frequentemente, mas sempre afastado como irrelevante para o debate ou como algo susceptível de ser resolvido a curto ou médio prazo. A experiência revela que não foi esse o caso. Apesar de estarmos hoje longe da situação escandalosa que existia na altura, o facto é que, como assinala Maria de Fátima Abrantes Mendes na versão comentada da Lei Orgânica do Referendo (.pdf), um sistema de recenseamento obrigatório como o nosso terá sempre mais eleitores inscritos que eleitores reais, estimando-se em cerca de cinco por cento o valor "normal" da abstenção técnica. Assim, quando se exige uma participação superior a 50 por cento, o que se está de facto a exigir é uma participação real significativamente superior.

Admitamos, contudo, que não se pode fazer com a que lei tome em conta um valor de abstenção técnica que permanecerá, em rigor, sempre desconhecido. Nem por isso a imposição de um quórum mínimo é menos arbitrária e o argumento da "legitimação" menos vazio. Imaginemos, por absurdo, que ela existia para as eleições autárquicas ou presidenciais. Nesse caso, não seriam eleitos órgãos autárquicos em muitas freguesias e concelhos, e não teríamos conseguido, de resto, eleger um presidente da República em 2001. Sob a mesma regra, nas eleições europeias de 2004, dezoito países - entre os quais Portugal - não teriam colocado representantes em Estrasburgo, e os Estados Unidos teriam passado uma parte importante da sua história sem um congresso. Mas se tudo isto nos parece absurdo, e se nada disto, pelos vistos, belisca a "legitimidade" destes órgãos, por que razão levanta problemas no caso de um referendo? Como é óbvio, a resposta não pode ter a ver com a necessidade de que uma percentagem mínima de eleitores (qual?) participe num acto eleitoral para que o órgão eleito ou a decisão tomada disponham de "legitimidade". Ela tem sim a ver com o facto de, em 1997, os partidos portugueses com maior representação parlamentar terem procurado garantir que, no compromisso entre democracia representativa e democracia directa, a primeira saísse completamente privilegiada. Ou mais precisamente: terem garantido que seria sempre ínfima a probabilidade que um referendo tivesse efeitos vinculativos contra a vontade de PS e PSD. A "teoria da democracia" e a "filosofia política" tiveram, como sempre, muito pouco a ver com este assunto.

No entanto, sucede que este pequeno arranjo teve uma consequência particularmente perversa. Para a entendermos, imaginemos um jogo de futebol - por exemplo, uma segunda mão das competições europeias - em que a uma das equipas (a equipa A) apenas serve a vitória, ao passo que para a outra (a equipa B) o empate é suficiente para passar a eliminatória. E imaginemos ainda que, às regras vigentes no futebol, se adiciona uma nova para este encontro: para que uma das equipas possa ser declarada vencedora, os 22 jogadores têm de percorrer, no total, um número estipulado de quilómetros durante os 90 minutos. Qual a melhor estratégia para a equipa B? Fácil: permanecer imóvel durante todo o jogo, especialmente se achar que a equipa A é favorita mas não conseguirá, sozinha, percorrer a distância prevista. No final, a equipa A poderá até ganhar por 90-0. Mas o resultado final, segundo as regras, é um empate. A equipa B passa à eliminatória seguinte.

Num paper muito recente - "Quorum and Turnout in Referenda" (.pdf) -, os economistas Helios Herrera e Andrea Mattozzi sugerem que a existência de um requisito de quórum mínimo afecta drasticamente os incentivos dos actores envolvidos num referendo. Quando esse quórum mínimo não existe, todos os partidos e grupos de interesses que defendem a manutenção do statu quo ou o desejam modificar têm incentivos máximos para mobilizar os eleitores, dado que a satisfação das suas primeiras preferências depende exclusivamente, naquilo que está ao seu alcance, dessa mobilização. Contudo, quando a mudança do statu quo passa a depender também da satisfação de um quórum de participação, os que se opõem a essa mudança ficam a dispor de uma estratégia adicional: abdicar de mobilizar os seus eleitores ou mesmo apelar à sua abstenção. As consequências são simples. Primeiro, a imposição de um quórum mínimo gera incentivos dos quais resulta sempre um aumento, e nunca uma diminuição, da abstenção. Segundo, na maioria das situações reais, ela constitui um enviesamento estrutural a favor da manutenção do statu quo. E terceiro, quanto mais exigente é o quórum, mais aqueles que preferem a mudança se aperceberão da futilidade dos seus objectivos, incentivando-os a moderar os seus esforços e poupar recursos para melhores ocasiões. Em resumo, uma regra que, supostamente, serviria para garantir a "legitimação" dos referendos contribui, afinal, para que o resultado de cada referendo em concreto não reflicta a real distribuição de preferências sociais e para que o próprio referendo como instituição saia deslegitimado.

É difícil imaginar pior. Mas veremos como o pior é possível quando examinarmos, no próximo artigo, as barreiras que o sistema impõe à iniciativa popular dos referendos.

P.S. - O comentário de Vasco M. Barreto levanta problemas interessantes à minha linha de argumentação. Contudo, ao confrontar essa argumentação com o que sucedeu em 1998, está a pedir mais dela do que aquilo que ela pode dar. A ideia de que as regras institucionais alteram o comportamento dos actores políticos pressupõe que eles podem antecipar as consequências dessas regras e agir em conformidade. Isso implica, muitas vezes, aprendizagem política, mas 1998 foi, afinal, o primeiro referendo. Não creio que quem aprovou a regra pudesse antecipar facilmente a assimetria que ela criava (apesar de ter antecipado, correctamente, que ela iria impedir que de um referendo saíssem resultados vinculativos que contrariassem interesses partilhados pelo Bloco Central). Hoje, contudo, essa assimetria já foi detectada. Apelos à abstenção de um segmento do eleitorado como este não se fazem por acaso, mas tiveram de ser aprendidos com a experiência passada, nacional ou internacional.

P.P.S- Ah, good point, claro, com ou sem Hayek. O meu fica algo enfraquecido, de facto. Talvez me tenha deixado influenciar excessivamente pelo caso italiano. Mas a vinculatividade não interessa? Talvez um exagero. Esperemos, por exemplo, por um "sim" não vinculativo à Constituição Europeia, que depois voltamos a falar... Ou será que toda a gente pensou que eu estava a falar do referendo do dia 11?

P.P.P.S- Sobre este assunto, ver vários posts do Luís Aguiar-Conraria, especialmente este e este.